DA VAGA DE SALA - Especial Doclisboa
Vacances, de Victoria Hely-Hutchinson: a omnipresença da câmara e da avó
Efetivamente não consigo resistir a um filme de Verão, de férias, no campo ou na praia, com jardim ou com piscina. Culpa dos filmes de Éric Rohmer, em parte, mas de outros mais, basta recordar alguns dos meus escritos neste espaço para constatar a evidência: 'A Piscina' (1969), de Jacques Deray; Libertad (2021), de Clara Roquet; Aftersun (2022), de Charlotte Wells; ou 'Céu em Chamas' (2023), de Christian Petzold. E, se há coisa a que não podemos escapar na vida é à paixão, lá fui até ao Cinema São Jorge, esta quarta-feira à tarde, repousar em Vacances (2024), primeira longa-metragem da britânica Victoria Hely-Hutchinson, em estreia mundial no Doclisboa. A juntar ao cenário veraneante de férias em Provence, no Sul de França, passadas numa casa de campo com piscina, havia mais um ingrediente ainda para acicatar - como se ainda fosse preciso - a vontade de ver este filme: o tempo e a sua passagem, capturados pela câmara naquele lugar durante uma década. Uma casa cheia daquele bom velho charme, recolhida na quietude, envolta de árvores numa vegetação que se estende no horizonte, aquecida pelo sol do mediterrâneo, banhada por uma piscina que faz esquecer o mar - ainda viajei até à casa de 'A Piscina', de Deray, em Saint-Tropez - e com uma avó-matriarca-cicerone que faz uma mesa sozinha, isto deveria ser o quanto baste para um belo filme de vacances. Mas não foi. A câmara de Victoria Hely-Hutchinson quase nunca se revelou invisível, quase nunca se diluiu naturalmente pela casa, por entre as pessoas - sendo as imagens captadas ao longo de 10 anos, ou 10 verões, o tempo jogaria a favor disso -, pelo contrário, condicionou quase permanentemente comportamentos, diálogos, dissertações, resvalando para testemunhos, em regard caméra algumas vezes. Por se tratar do seio familiar da própria realizadora, do seu contexto de vida com todas as ramificações associadas, esta opção deliberada por um cinéma vérité, de câmara omnipresente - inclusive câmaras em tripés espalhadas pela casa, como nos apercebemos no filme - e com Hely-Hutchinson a interpelar e forçar, retira naturalidade, aumenta a premeditação, e contribui para que o espectador se torne passivo perante uma tentativa de construção de argumento mais ficcional do que outra coisa.
Acredito que esta opção por ter a câmara como corpo omnipresente fizesse sentido se o filme tivesse prolongado até ao fim a sua toada inicial: palco principal para avó-matriarca-cicerone que brilha em frente à câmara, com um savoir-faire intrínseco que faz com que quer ela quer nós, espectadores, nos esqueçamos que há uma câmara apontada - a espontaneidade e o à-vontade da velha senhora são desconcertantes e, sem exageros, diria que ela sozinha naquele cenário poderia muito bem ser o filme -, alternando esse palco central, feito de dissertações, histórias, trejeitos, poses e movimentos da boémia senhora, com planos ora do interior ora do exterior da casa, lá dentro, a câmara a deslizar por elementos decorativos, ou a refletir a imagem da avó, em múltiplas figuras, nos azulejos azuis da casa de banho enquanto ela lava os dentes (um maravilhoso plano que exacerba a omnipresença da dona da casa), lá fora, a câmara a desdobrar-se por entre a calmaria na piscina ao som de cigarras, com os corpos molhados debaixo de sol quente, num contraste entre a flacidez do corpo da avó e a firmeza dos corpos das netas loiras - as jovens irmãs Hely-Hutchinson -, ou no contraste entre a vitalidade da avó e a sonolência do apagado marido, que ecoa roncos na espreguiçadeira, mas também por entre as árvores sacudidas pelo vento que se faz ouvir e sentir, ou ainda por entre a fachada da casa em que as portadas feitas de azul turquesa se abrem e das janelas vê-se um horizonte largo.
Quiçá por temer que o tédio tomasse conta do filme, quiçá por querer um argumento mais narrativo, quiçá por querer uma reprodução mais próxima das suas férias em família, Hely-Hutchinson foi trazendo mais pessoas para o filme, fazendo transbordar as diferentes maleitas da família, mas sem nunca conseguir fazer com que o todo funcionasse: não há grandes conversas ou discussões em aglomerado. É mais um todo desconjuntado em partes: a mãe de Victoria, com as dores da invisibilidade a que a matriarca sempre a submeteu, desabafa com a filha-câmara; a irmã fala com Victoria-câmara das suas inseguranças em relação ao corpo e dos ataques de pânico, que a avó ainda acicata mais; o irmão delas isola-se e refugia-se desalmadamente em exercícios físicos, quebrando o zen dos bons ócios e tédios de verão que o filme pareceu alimentar no início.
Vacances, de Victoria Helly-Hutchinson (2024)
Visionado no Doclisboa, no Cinema São Jorge
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Vacances, de Victoria Hely-Hutchinson (2024)



