DA VAGA DE SALA
'Justa', de Teresa Villaverde: feridas e cicatrizes em fragmentos
Ao sabermos à priori que o pano de fundo do filme que vamos ver é o grande incêndio de Pedrógão Grande (2017) - a crueza dos números é implacável: 66 mortos e mais de 250 feridos, além de 500 e tal casas atingidas e mais de 50 mil hectares de área ardida - e as consequências naqueles que sobreviveram, e no território que resistiu, diria que só podemos esperar que cada imagem valha mais do que mil palavras. É de cinzas, feridas e cicatrizes marcadas nas pessoas e natureza, num novelo extenso e profundo que as envolve, que se faz 'Justa' (2025), de Teresa Villaverde. É pelas imagens - e pela força das mesmas - que sentimos a perenidade das queimaduras infringidas pelas labaredas; é pelas imagens que cheiramos o odor a morte; é pelas imagens que observamos o exercício do luto; é pelas imagens que constatamos a partilha da dor; é pelas imagens que a entreajuda mais se manifesta; é pelas imagens que deciframos o significado das cores naquele território; é pelas imagens que olhamos para os copos que transbordam e imaginamos as lágrimas que os olhos agora secos já transbordaram; é pelas imagens que o cemitério ganha luz sagrada no escuro e vazio da noite - é pelas imagens que 'Justa' liga e costura as feridas e cicatrizes em fragmentos por meio de cinzas. Diria até que as imagens não precisariam das palavras, apenas dos sons que vamos ouvindo: da fauna, da flora, do vento, da bola que bate na parede do cemitério, da respiração, do grito que ainda tem uma réstia de força para sair das entranhas de Elsa (Betty Faria). Julgo até que as palavras, nos diálogos que ainda assim nunca são prolongados, cortam de certo modo o efeito hipnótico e sensorial do filme.
O corpo velho e cansado de Elsa (Betty Faria é absolutamente extraordinária!) que se arrasta a partir dos sentidos que lhe sobraram após a perda da visão - durante o dia macabro em que sobreviveu às chamas e viu o marido ser engolido pelo alcatrão escaldante -, funde-se e confunde-se com aquela paisagem vilipendiada pelas labaredas. Naquela que é a melhor sequência de todo o filme, Elsa/Betty Faria, cega, vagueia a solo pelo meio das árvores ainda chamuscadas, naquela terra castanha como o seu casaco e onde só podemos imaginar, ou visualizar, não sabemos, de tão forte que é o impacto visual e emocional, as cinzas, em harmonia e fusão com os seus cabelos cinzentos; mas antes de vermos Elsa/Betty Faria cair por terra como mais uma árvore tombada com as raízes deslaçadas e arrancadas - assim vimos logo nos planos inaugurais do filme - , a câmara faz-nos caminhar pela estrada da morte, à boleia de um travelling muito lento que nos consegue fazer cheirar, mais do que ver; e, voltando ao corpo Elsa/Betty Faria, agora imediatamente antes dela cair literalmente por terra, a câmara captura-lhe a mente, transforma-se no seu corpo, e, com imagens embaçadas, desfocadas, feitas de alguma turbulência, conseguimos ver aquilo que os olhos de Elsa/Betty Faria veem sem ver: a natureza verde, a água, a vida daquele território antes de ser arrebatado pelas cinzas da morte, pela mancha negra que o fogo deixa depois de cessar. A memória visual e emocional de Elsa/Betty Faria sobreviveu à morte da sua visão, à morte do marido e das restantes vítimas. É um grande momento de cinema que a genialidade de Teresa Villaverde nos proporciona - em perfeita harmonia com a grandíssima Betty Faria. Se o filme acabasse aqui, já seria enorme.
E é também muito pelas imagens e pela sua força que o rosto de Filomena Cautela - a psicóloga de Justa (Madalena Cunha), a menina que perdeu a mãe no incêndio - se integra e se funde nesta paisagem natural, visual e emocional, não raras vezes em grandes planos. O azul-esverdeado dos olhos aguados no rosto de Filomena Cautela, como reflexo do desgaste emocional que a relação com Justa cria, dialoga com aquele verde-azulado da natureza e da água que corre nas cascatas que a câmara nos fez ver a partir da mente de Betty Faria; e, se quisermos, o castanho das sardas salpicadas no rosto de Cautela, em alguns planos até incrementadas pelo castanho da própria terra que lhe suja a face, ajustam e reforçam essa imagética de absorção e fusão com a paisagem, com aquele território ferido de morte. E tão habituados que estamos a ouvir a tagarelice da apresentadora na RTP, eis que aqui, em 'Justa', cada imagem do seu rosto vale mais do que mil palavras.
A completar uma tríade visual e imagética poderosa no filme, juntamente com as personagens de Betty Faria e Filomena Cautela, surge Mariano, pai de Justa, ou José Ricardo Vidal (um corajoso sobrevivente de outras tragédias da vida que Teresa Villaverde resgata para o elenco de 'Justa', potenciando uma simbiose sensacional entre realidade e ficção: em 2009, José Ricardo Vidal sofreu um acidente de viação que lhe deixou queimaduras no corpo, tal como as vítimas de Pedrógão, além de ter ficado também com o rosto desfigurado e com partes do corpo amputadas. O autor do livro 'Viver com Alma' carrega e transporta para 'Justa' as feridas e cicatrizes físicas, cruas, marcadas na carne e nos ossos - além das outras. Num dos melhores planos do filme, no cemitério onde Mariano acompanha Elsa numa visita aos entes queridos que partiram, vemos, com toda a profundidade de campo, Mariano a olhar para o jazigo, cabeça para baixo, com um bouquet de flores lilás, em sintonia cromática com as suas mãos cicatrizadas, enquanto na imensidão do espaço conseguimos - sempre nesse mesmo plano geral - saltar o muro do cemitério e ver a serra no horizonte onde ao longe as ventoinhas de energia eólica rodam como quem limpa o ar, das cinzas, e o cheiro, da morte. Ainda sobre o cemitério, há um outro plano - este, à noite - em que vemos aquele lugar com uma luminosidade celestial no meio do escuro cerrado, como uma ilha ou um barco que reluz, em suspensão, no escuro. Tremendo!
E voltando aos protagonistas, à pequena Justa, que parece encarnar um pouco de Maria de Medeiros em 'Três Irmãos' (1994) - também vai cuidando do pai -, naquela demanda de resistir à dor e às dificuldades como gente bem mais crescida, contraindo emoções, cabe-lhe carregar a missiva da palavra, de falar mais do que os restantes, contribuindo para a tal saída da (boa) hipnose na qual o filme nos mergulha. Talvez o ponto tenha sido mesmo esse: expressar-se a partir das palavras por não conseguir fazê-lo de outra forma. Contudo, faz com que o filme saia, por vezes, do trilho por onde como que por magia andamos naquele território-emocional-ardido grande parte do tempo. Não que belisque por aí além a densidade do filme.
'Justa', de Teresa Villaverde (2025)
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