DA VAGA REALIZADOR DO MÊS

Stéphane Pires • 15 de setembro de 2025

Libertad, de Clara Roquet: à frente dos olhos


Após seguirmos para o habitual interregno de Verão à boleia de Aftersun (2022) - cuja realizadora Charlotte Wells, com a sua única (para já) longa-metragem, foi a escolhida DA VAGA REALIZADOR DO MÊS de Julho -, estamos de volta, ainda a tempo de nos despedirmos do Verão, cabendo à catalã Clara Roquet - tal como Wells uma debutante mais do que promissora - as honras DA VAGA REALIZADOR DO MÊS, em Setembro. Libertad  (2021) [Liberdade] - primeira e única (também por agora, assim esperamos) longa-metragem de Clara Roquet, ela que gosta de se assumir como argumentista, e assim tem sido em diversos filmes, como em 10.000 km (2014) e Els dies que viendran (2019), ambos de Carlos Marques-Marcet; Creatura (2023), de Elena Martín Gimeno, ou mais recentemente em La virgen rosa (2024), de Paula Ortiz, entre outros - é um filme de Verão, de mar, de sol, de corpos, de família, de despedidas e de partidas, de liberdade(s). Libertad coloca-nos no seio de uma família catalã que faz férias veraneantes numa faustosa casa de campo e mar na Costa Brava (província de Girona) e confere-nos variados ângulos de observação para nos determos. Digamos que nos recorda 'O Pântano' (2001), de Lucrecia Martel, mas menos decadente, mais límpido, com menos bolor, mais airoso. Tal como no filme de Martel, a vida vai seguindo o seu curso, com o ócio e o tédio como frutos do calor do Verão, sem grandes acelerações, ânsias, agitações, sem clímax - injetando elipses para evitá-los - numa dinâmica intergeracional que se vive na casa-de-família; uma dinâmica pintada pela presença de muitos, em que nunca chegamos a saber totalmente quem é quem, e pela a coexistência entre patrões e empregados e, consequentemente, estratos sociais distintos. Nota-se que Clara Roquet, à semelhança da compatriota catalã Carla Simón, é uma herdeira distinta do estilo marteliano: reproduzem nos seus filmes muito daquilo que os seus olhos e ouvidos viram, observaram, escutaram, presenciaram, absorveram, como autênticas esponjas, enquanto crianças, adolescentes e jovens nas suas vidas familiares. Em Libertad, como em 'O Pântano' ou como em 'Alcarràs' (2022), de Carla Simón, cabe-nos a nós, espectadores, decidir quem queremos ver como protagonista(s) centrais - se é que queremos -, entre crianças, adolescentes, jovens, adultos ou mais velhos.


O que se esconde por detrás da cortina? Assim podemos questionar quando vemos o plano de abertura de Libertad. A câmara demora-se a mostrar-nos a cortina cinzenta feita de movimentos, sombras e ruídos, de lágrimas e suspiros - não do filme de [Ingmar] Bergman, mas mais como um rebuscar da função catalisadora do som no cinema de Martel, e que também é apanágio de Simón, especialmente em Alcarràs; mais à frente, em Libertad, deparamo-nos com um plano em que vemos a colombiana Rosana (Carol Hurtado), empregada doméstica e cuidadora, e a filha Libertad (Nicolle Garcia) a almoçarem numa mesa estreita de uma cozinha que parece estar enfiada numa cave, onde as janelas têm uma grade-rede que lhes retira qualquer vista, enquanto ouvimos (sem ver) o bater das bolas de ténis e as vozes da família burguesa que se entretém no exterior - de Rosana, a faz-tudo em casa, incluindo o tratar da velha matriarca Ángela (Vicky Peña), que padece de Alzheimer. Rosana puxa a longa cortina e dá-nos a vista desafogada para o verde da vegetação e o azul do mar; vista essa que é preciso tratar, manter e cuidar por dentro, por detrás da cortina, e das longas portas e janelas envidraçadas que se estendem e que obrigam a câmara a encetar uma suave panorâmica para acompanhar todo o movimento das mãos de Rosana. E é também pelas mãos que chegamos à avó e mãe Ángela, é sobre elas que a câmara se detém, antes de lhe vermos o rosto: mãos que ao contrário do cérebro parecem manter intactas as habilidades, para costurar ou para tocar piano.


E é mesmo ao piano que se dá um dos momentos mais ternos do filme, que une a velha Ángela e a jovem Libertad, de 15 anos, recém-chegada da Colômbia para viver com a mãe Rosana, que já não vê desde muito pequena. Sentadas lado a lado ao piano - já depois de as termos visto lado a lado, de costas, sentadas na cama, num silêncio apenas interrompido pela música clássica que Ángela escolhera -, com a câmara colada aos rostos de ambas, especialmente ao de Libertad, observamos enternecidamente aquela aula inusitada. E é a partir desta (não) relação de Ángela e Libertad que vem à tona o peso do argumento para Clara Roquet, distanciando-se aqui de Martel e de Simón. Roquet junta as duas personagens nesses dois momentos, que referi, como preparação de terreno para o desfecho do filme, da história: quando Ángela se levanta da festa que está a decorrer no jardim e parte sozinha - acompanhada de música introduzida pela única vez no filme -, em mais uma tentativa, rumo à porta aberta que lhe põe a rua à frente dos olhos, e a liberdade que ela busca, liberdade essa que Libertad acaba por lhe consentir, também à frente dos seus olhos. E ao libertar Ángela, Libertad liberta, consequentemente, a mãe Rosana, que deixa de ter a doente de Alzheimer para cuidar e pode seguir caminho com a filha; liberta também a família num todo, que passava os jantares à mesa de jardim a lavar roupa suja sobre responsabilidades em vigiar a matriarca, que sempre que podia tentava esgueirar-se; isto tudo depois de Libertad já ter libertado Nora (Maria Morera) - pois, ainda não falámos dela - uma espécie de alter-ego da própria Roquet, naquela idade, e é a partir dela, dos olhos dela, do olhar dela, que a câmara amiudadas vezes se coloca, como a câmara de Carla Simón com a pequena Frida em 'Verão 1993' (2017). Com a chegada de Libertad, Nora, sensivelmente da mesma idade, descobre todo um admirável mundo novo, que apenas imaginava, entre passeios na cidade - e como lembra 'O Pântano', uma vez mais, com aquelas lojas, com aquelas ruas -; saídas à socapa para a discoteca; mergulhos noturnos; fugas em motas. Libertad e Nora entrelaçadas uma na outra por cabelos de Rapunzel ou como pequenas-sereias nas rochas de mar azul-turquesa, com os corpos entregues ao sol, numa intensa cumplicidade de adolescentes num Verão, assim as vemos.


O relevo do argumento e um naturalismo não tão espelhado distinguem Clara Roquet de Lucrecia Martel e de Carla Simón, mas não o suficiente para deixar de poder formar uma tríade muito própria com elas, pelo menos aos meus olhos.


Libertad, de Clara Roquet (2021)

Visionado em Filmin Portugal



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Libertad, de Clara Roquet (2021)

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