DA VAGA DE SALA - Especial Festa do Cinema Francês

Stéphane Pires • 9 de outubro de 2025

'A Piscina', de Jacques Deray: reservatório de um (só) predador


Numa altura em que o Verão parece ter emprestado ao Outono um pouco do seu calor - pelo menos em Lisboa -, diria que um salto no tempo e no espaço até à célebre Saint-Tropez (Riviera Francesa, Côte d'Azur) em dias, incluindo noites, tórridos, seria uma sequência feita sem um grande choque térmico. E talvez porque nos apetecesse estar em modo dolce far niente, longe de grandes aglomerados de gente, de azáfama, uma casa-refúgio embutida na natureza, suficientemente perto e suficientemente longe da glamourosa Sain-Tropez, seria o cenário mais idílico. Quiçá até nos esqueceríamos do mar cristalino com tons de azul-turquesa da Côte d'Azur se tivéssemos uma boa piscina, onde desse o sol e a sombra, e que fosse envolta por um jardim largo o quanto baste para nos espraiarmos por ele afora e que nos permitisse caminhar um pouco entre a piscina e a casa, e vice-versa, para sentirmos esse transfer. De resto, sumo das laranjas, compota dos morangos em pote sem rótulo e café acabado de passar, para petit-déjeuner solarengo e tardio; cerveja fresca, Ricard, água tónica e whisky de uma Johnnie Walker Red Label, para drinks entre banhos, e voilá! Posso dizer que foi neste imaginário que passei o meu final de tarde de ontem na Cinemateca, na Retrospetiva Alain Delon (DA VAGA DE SALA - Especial Festa do Cinema Francês), a ver 'A Piscina' (1969), de Jacques Deray.


É a olhar para a piscina que começamos e acabamos a ver o filme: as árvores e as suas ramificações espelhadas nela. Durante o filme veremos também refletidas na sua água a casa de campo e os corpos: a vida a dar-se em redor dela, da piscina. "O melhor da casa", diz Jean-Paul (Alain Delon) quando apresenta a piscina a Harry (Maurice Ronet), amigo do casal Jean-Paul e Marianne (Romy Schneider), que acaba de chegar com a filha Penelope (Jane Birkin)  na sua macchina descapotável. É a piscina, logo na primeira sequência do filme, que nos apresenta Jean-Paul e os seus traços de predador: deitado à borda dela, com o corpo queimado de quem já faz daquele poiso debaixo de sol o seu habitat natural, a largar um líquido verde pela boca adentro, é entretanto desperto pelo chapiscar da água provindo do mergulho de Marianne, que se junta a ele e lhe pede para pôr as garras de fora, ou seja, arranhar-lhe as costas como só ele sabe; ele não se faz rogado e entre os arranhões surge o rasgar - ouvimos de som empolado - do biquíni (sutiã), seguido do som do telefone que Jean-Paul não quer que Marianne vá atender (suspeitaria de invasões inoportunas ao seu habitat) e então engalfinham-se os dois, corpos de peles bronzeadas ao limite pelo sol a fundirem-se e a confundirem-se um com o outro - vemos bem de perto, quase como se tocássemos na(s) pele(s) de Schneider e Delon. É a piscina que produz o despertar matinal de Jean-Paul, num mergulho de chapa, sem qualquer preparação. É na piscina que Harry ganha o despique de braçadas a Jean-Paul - assim decide Marianne. É na piscina e em volta dela que Harry se espraia, forçando Jean-Paul a uma coabitação de habitat, nos mergulhos, nos pequenos-almoços e  drinks, no galanteio à empregada doméstica que os serve; e até na apreciação estética da filha Penelope a que Harry convoca o amigo - ela ciranda sempre ao longe e as variadas panorâmicas, pela amplitude conferida, permitem-nos vê-la no horizonte - "nada mal", responde-lhe Jean Paul. Não é dentro da piscina, porque Penelope não ousa entrar nela - prefere serpentear em volta, esparramando-se nas espreguiçadeiras, baloiçando a sua aparente puerilidade na cadeira suspensa junto à piscina sob a mira predadora de Jean-Paul -, mas sim em torno dela que Jean-Paul segura, melhor, agarra a mão de Penelope a fim de impedir que ela lhe tire o prazer de ser ele a acender-lhe o cigarro, primeiro, e para lhe questionar a idade, depois, levando ao virar de pescoço brusco e, de seguida, ao soltar de palavras como senha, de boca semiaberta revelando a sensual imperfeição dos seus dentes: "Dix-huit ans". Mais tarde, é também junto à piscina, agora à noite, que Jean-Paul se insinua vincadamente a Penelope, colocando-lhe a mão no ombro, sob o olhar ao longe de Marianne, que dançava enternecidamente com Harry (ex-amante) - e quando Schneider olha parece que o tempo, o filme e o mundo param, todos ao mesmo tempo (passe a redundância), uma mulher de olhos verdes será sempre uma mulher de olhos verdes, e mais não digo -; quanto ao que (ou se) acontece nessa noite e/ou na escapada do dia seguinte, entre Jean-Paul e Penelope, cabe às elipses as respostas. Sim, só poderia ser na piscina, no seu habitat, que o predador procederia à eliminação do seu competidor. E é já sem o sol, que a morte parece ter levado com ela, que a câmara estaciona perante Jean-Paul e as duas mulheres a olharem para a piscina - nada mais voltará a ser como era.


Já não se fazem filmes com esta simplicidade complexa que vemos em 'A Piscina'. A câmara de  Deray  está essencialmente ao serviço dos corpos - importa mais como os corpos se movem do que as palavras que são ditas -, uma câmara à flor da pele que sabe encostar-se aos corpos e exalar toda aquela sensualidade quente de Verão; uma câmara que, ao mesmo tempo, confere espaço aos corpos e tempo a nós para os observarmos, e também apreciarmos, ao longe; uma câmara que se desdobra em planos-sequência para nos fazer seguir os passos e movimentações dos protagonistas, como que colando os seus movimentos; uma câmara que se preocupa em abrir o plano, com as panorâmicas, para que possamos ver mais em redor. E quando o filme vira mais  thriller  e o suspense passa a comandar - na parte final -  Deray  usa os  zoom in  nos rostos de Marianne e de Jean-Paul para nos mostrar e enfatizar a mudança drástica do quadro; os olhos verdes de Marianne foram capturados pelo vermelho da dilatação dos vasos sanguíneos, o seu olhar já não é perfurante e desafiador, agora é estarrecido, assustado e desconfiado, enquanto a inquietude nervosa, essa, toma conta de Jean-Paul.


E foi necessária a morte para vermos o mar de Saint-Tropez, no horizonte, como pano de fundo no cemitério - lembrei-me do cemitério marroquino de  'O Azul do Cafetã' (2022), de Maryam Touzani, também com o mar à vista.


La Piscine, de Jacques Deray (1969)

Visionado na Festa do Cinema Francês, na Cinemateca - Sala M. Félix Correia



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'A Piscina', de Jacques Deray (1969)

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