DA VAGA REALIZADOR DO MÊS

Stéphane Pires • 30 de julho de 2025

Aftersun, de Charlotte Wells: um Verão de amor, em flashes e memórias


Por estes dias, a minha mãe - sofre de Alzheimer - olhava obsessivamente para duas fotografias (físicas) que segurava nas mãos; obsessivamente porque fixava o olhar nelas de modo prolongado, quer numa quer noutra, e a elas voltava amiudadas vezes ao longo de um dia. Deveras limitada na capacidade de verbalizar aquilo que (ela) via e sentia, pus-me a imaginar que espécie de flashes e de memórias, entrecortadas e deslaçadas, poderiam pairar-lhe pela mente naqueles momentos. A memória material, expressa naquelas duas fotografias, e a memória humana, hipoteticamente em laivos de lembranças passadas da minha mãe, coexistiam ali, enquanto a mim me restava conjeturar pensamentos, ou seja, os frutos dessa relação de coexistência. Em Aftersun (2022) - primeira e, até ver, única longa-metragem da escocesa Charlote Wells (escolha DA VAGA REALIZADOR DO MÊS [de Julho]) - a memória material concedida pelo vídeo, através das imagens captadas por Sophie [Frankie Corio], via câmara mini Dv, durante umas férias com o pai (Paul Mescal) num Verão longínquo no tempo, relaciona-se com a memória humana da mesma Sophie (Celia Rowlson-Hall) uns 20 anos depois; e a nós, espectadores, Wells confia-nos a inevitável missão de construir contexto: pensando, imaginando, conjeturando. Pois as lembranças feitas de flashes e memórias da protagonista - e de certa forma da própria realizadora, que perdeu o pai ainda na adolescência e que reconhece o filme como sendo "emocionalmente autobiográfico" - deixam muitas pontas soltas, que nos cabe a cada um de nós coser com linha própria, não na perspetiva de entender ou percecionar o filme, mas sim de fazer o próprio filme.


As primeiras imagens de Aftersun são mesmo da memória material: tremidas, desconexas, de planos inclinados, oscilantes, a ligarem o pai e a filha (ainda pequena, de 11 anos), em formato de vídeo caseiro, no quarto de um resort perdido num Versão na Turquia. A escolha dessas imagens para o arranque do filme traça, ou define, um quadro em movimento, imperfeito, irregular, de altos e baixos, de brusquidão, que, com o passar da narrativa, podemos crer que corporize a relação daquele pai com aquela filha. Da memória material dá-se de seguida o transfer para a memória humana, que veste rosto de presente: a Sophie adulta. Entramos na sua cabeça - melhor, na sua mente - e mergulhamos num emaranhado de flashes e memórias, que depois desagua num travelling (lateral) noturno feito de alternância entre o escuro da noite e a luminosidade que irradia de letreiros e néones à beira de estrada, agora novamente na Turquia. E o lastro que a memória material deixa e espoleta na memória humana é genialmente - e o génio aqui é obviamente Charlotte Wells - difundido num longo plano fixo (julgo que o mais longo de todos, acima dos 3 minutos): ficamos estacionados em frente ao pequeno televisor do quarto de hotel a ver a transmissão em simultâneo do vídeo que Sophie está a fazer com a câmara do pai, uma espécie de entrevista em que ela questiona o pai sobre o que ele achava que iria ser, no futuro, quando fez 11 anos; antes de responder, o pai pede-lhe para desligar a câmara, ao que Sophie, com alguma resistência, acede, poisando a mini DV ao lado do televisor e dos livros de Tai Chi e meditação que vemos sempre no mesmo plano; finda a memória material no televisor, este já apagado reflete a imagem, a sombra, do pai, enquanto ele responde à pergunta da filha - cá está, a memória humana prossegue com o caminho aberto pela memória material. Mas Wells mostra-nos que o inverso também é possível, também acontece: a memória humana a anteceder a origem da memória material. Quase no final das férias de Verão a dois no resort turco, pai e filha acedem ao pedido para uma fotografia instantânea: enquanto o flash dispara, o pai faz uns chifres por cima da cabeça de Sophie, sem que ela se aperceba, entretanto retomam o jantar e o pai vai guardando do seu lado a fotografia até que ela ganhe vida.


Para a tal missão inevitável de construirmos contexto para a história, para a relação pai-filha, que mencionei há pouco, Wells confere-nos objetivamente tempo e espaço, privilegiando o interior do quarto, desde cedo e repetidas vezes, especialmente quando o silêncio ou a ausência de diálogos, acompanhados pelo estacionamento da câmara (a câmara de Wells, leia-se, não a de Sophie) imperam, em harmonia com os corpos que se expressam: a respiração de Sophie a dormir enquanto o pai faz movimentos de Tai Chi na varanda; o arrumar das roupas e o olhar ao espelho de Sophie espreitando a adolescência; o corpo nu do pai, espojado na cama, que volta ao quarto depois de deixar a alma no escuro do mar e do céu com os quais se fundiu e confundiu numa noite de vagueio noturno; o choro compulsivo do pai em que cabe às largas gostas de Paul Mescal, e aos músculos movediços, corporizar angústia, tensão e sofrimento - a fazer lembrar a expressão das costas de Franz Rogowski em Disco Boy (2023), de Giacomo Abbruzzese. Já fora do quarto, é mais para relaxar, contemplar e submergir em imagens-memórias de Verão, quase que podemos fechar os olhos e mesmo assim ver o azul da água e do céu, o sol que diz presente, o tereré nos cabelos, as espreguiçadeiras, o ócio que roça o tédio - não falta a macarena em coreografia e os karaokes habituais. Nesta calmaria de resort de Verão existem, aqui ou ali, parêntesis que pairam tensão associada a uma eventual fatalidade envolvendo o pai, de suicídio a morte acidental, que pode dar-se. Além do já mencionado mergulho noturno, há uma ameaça de atropelamento involuntário de um autocarro, ou ainda no mergulho subaquático; aliás, nessa altura do mergulho, emerge mais um plano sublime, quando a câmara fixa o rosto do pai, bem encostado a um dos lados do ecrã, embutido no horizonte de mar e céu, e num suave e ligeiro movimento de câmara o rosto fica fora-de-campo e a paisagem natural ganha tonalidade cinzenta.


Com efeito, o plano derradeiro de Aftersun - já depois daquela libertação total ao som de Under Pressure (de Queen e Bowie), de dizer que Wells parece injetar a música com pinças ao longo do filme - desenha, numa panorâmica, essa relação de coexistência entre memória material (o rosto de Sophie, criança, no ecrã a despedir-se do pai) e memória humana (o rodar da câmara a prosseguir até à Sophie adulta sentada no sofá), culminando no epílogo atrás da porta escura.


Aftersun, de Charlotte Wells (2022)

Visionado em Filmin Portugal



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Aftersun, de Charlotte Wells (2022)

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