DA VAGA REALIZADOR DO MÊS
'Recordações da Casa Amarela', de João César Monteiro: crónica de portugalidade
"Caíram-me na fraqueza"; "Só visto, contado não se acredita"; "A vida são dois dias"; "O crime não compensa"; "A saúde é o bem mais precioso que temos"; "Ver para crer, como São Tomé"; "Isso é outra conversa"; "Cada um sabe de si e Deus sabe de todos"; "Quem não aparece, esquece"; "A mim quem me tira o bacalhau tira-me tudo"; "Agora a música é outra"; "Quero cheirar teu bacalhau, Maria" [música de Quim Barreiros]; "Vou gastá-lo mal gasto"; "Se Deus nos der vida e saúde". Adágios, ditados, tiradas, expressões, feitas de sabedoria popular, crença e crendice - um verdadeiro compêndio de portugalidade que vamos ouvindo ao longo de todo o filme 'Recordações da Casa Amarela' (1989), de João César Monteiro (escolha para Dezembro DA VAGA REALIZADOR DO MÊS), maioritariamente pela boca do próprio, na pele de João de Deus, mas também por outras personagens. João de Deus verá depois João Cesar Monteiro prolongar a sua saga numa trilogia de vida portuguesa com 'Comédia de Deus' (1995) e 'Bodas de Deus' (1999). João de Deus - o protagonista, não o poeta - corporiza, naquela fraca e bizarra figura, muitos dos males produzidos e cultivados pelo Portugal da tacanhez, da proibição, do conservadorismo, da religião, do Estado Novo, e, agora, numa democracia ainda pueril, à procura de rumo na vida, que ainda olha para o FMI por cima do ombro, o letrado, o chico-esperto, o voyeur, o mundano, o reservado, o solitário, o pervertido, o observador, o amoral João de Deus usa forma, truques e hábitos do tempo bafiento para se ir safando na Lisboa dos finais dos anos 80. Condensa em si o secretismo de um PIDE, a oratória de um padre, incluindo timbre, volume e cadência, a pobreza e as pragas de um homem do povo, a perversidade de um frequentador do Ballet Rose, a loucura de um intelectual.
É como se João de Deus, com a sua amoralidade, carregasse naquele corpo tão franzino a fusão de dois Portugais, o da velha ditadura e o da tenra democracia, num processo de transmutação ainda em fase precoce, menos de 15 anos volvidos desde o 25 de Abril, com PREC, Verão Quente, Reforma Agrária, FMI, governos provisórios, tudo pelo meio. Não há borracha que apague vícios e resquícios de um passado ainda tão presente. A fórmula Deus, Pátria e Família, propagada aos sete ventos pela fina voz de Salazar durante o Estado Novo, ainda funciona como um décor que esconde, como já escondia antes, valores mais altos: sexo, dinheiro e poder. No caso de João de Deus, na impossibilidade de ser Romeu, dinheiro para ter poder e assim chegar ao sexo com Julieta (Teresa Calado), a rapariga do clarinete, filha da dona Violeta (Manuela de Freitas), a "puta da velha" que gere a pensão onde João de Deus aluga um quarto. Diria que a fórmula Deus, Pátria e Família para João de Deus é magistralmente vertida numa única sequência, verdadeiramente espiritual, ao som de Stabat Mater, de Vivaldi, quando o nosso protagonista sobe lentamente, degrau a degrau - o inchaço nos testículos provocado aparentemente pelos percevejos limita a mobilidade -, a escadaria, que pode ser de um convento ou de outro lugar de culto, seguindo a via sacra, por meio de paredes forradas a azulejos, até à velha mãe, que de gatas esfrega vigorosamente o soalho, sob as quinas da bandeira portuguesa numa grande cortina vermelha, de veludo. Já antes, imediatamente após o travelling a partir do barco no Tejo que nos põe a olhar para Lisboa enquanto ouvimos o comichoso monólogo de João de Deus, entramos efetivamente numa Igreja, na companhia do protagonista, para consubstanciar o chamamento das badaladas da Sé que ecoaram ainda no rio.
No que respeita aos valores mais altos de João de Deus - dinheiro (que dá) poder (para ter) sexo (com Julieta) -, uma outra sequência, agora no quarto da recém-falecida Mimi (Sabina Sachi), uma prostituta que vivia na mesma pensão, é tremendamente ilustrativa. Com a sua gabardine à Inspector Gadget (desenhos animados também dos anos 80), João de Deus deambula meticulosamente por entre objetos no quarto da mulher que acabara de morrer, a mesma que lhe confessara não gostar dos bancos e que o dinheiro é para guardar como na terra dela, a norte, debaixo do colchão ou numa panela; no colchão resta o sangue da morte acidental - e seria demasiado pronunciado -, sangue que nos faz vir um pouco atrás no filme para recordar essa conversa ao almoço de Mimi e João de Deus enquanto degustam um arroz de cabidela e ela fala das galinhas da terra que ainda esperneavam após a decapitação; conversa essa que se dá logo depois do abate do caniche de Mimi no canil municipal; pragmatismo amoral de ambos servido à mesa numa conversa que, voltando à sequência do quarto de Mimi, dá pistas que levam João de Deus a esventrar os trapos da barriga da boneca para assim herdar o pé-de-meia que a mãe poupara para a filha - está com a avó longe da pecaminosa Lisboa - ter uma vida menos má do que a dela. Valores mais altos se levantam para João de Deus, que, a olhar e snifar aqueles molhes de notas na cama da falecida, se empodera. A nós, espectadores, João César Monteiro já nos mostrara o vascular em elevação do desodorizante perante a vista-espelho das pernas brancas e depiladas de Julieta; também nos mostrara, numa outra sequência espantosa, o bolo ou suspiro em forma de pénis ereto que a velha Violeta morde consoladamente, assim vemos no olhar dela, ao lado de João de Deus que olha para a filha Julieta, cujo plano seguinte mostra o seu corpo a passar junto a um pilar no meio da rua (daqueles que impedem passagem de carros), mais um objeto fálico a aguçar o apetite, e daí a câmara move-se lentamente ao som da fonte que jorra como um orgasmo.
No final, dinheiro e poder valeram o sexo com Julieta, mas por linhas tortas. Só a fortuna (da sorte) no infortúnio conseguirá resgatar João de Deus e fazê-lo renascer das cinzas como o vampiro em 'Nosferatu' (1922), de F.W. Murnau; assim vemos no plano-sequência final, um dos mais memoráveis de sempre do cinema português, seguramente, que cessa em travelling para cima numa chaminé comprida, cilíndrica, viril, na forma da outra cabeça que guia João de Deus.
'Recordações da Casa Amarela', de João de Deus (1989)
Visionado no Youtube
Adquira o Livro NA VAGA DE ROHMER - Escritos sobre (65) filmes | O ANO ZERO
À venda em Portugal
À venda no Brasil

'Recordações da Casa Amarela', de João César Monteiro (1989)



