DA VAGA DE SALA
Interiors, de Woody Allen: Woody entre Bergman e Antonioni
Entalado entre os míticos Annie Hall (1977) e Manhattan (1979), naquela cadência frenética de Woody Allen em fazer um filme a cada ano, Interiors (1978) ('Intimidade') parece ter sido engolido pelo reconhecimento global que esses dois filmes - o antecedente e o precedente - granjearam, não só aquando das respetivas estreias, mas ao longo de toda a carreira do cineasta nova-iorquino, apesar dos seus 50 filmes já realizados. Se Annie Hall eternizou Woody Allen (e Diane Keaton também, claro), Manhattan deu extensão a essa linha de um cinema alicerçado em diálogos frutíferos e inusitados, mundanos e (pseudo-) intelectuais, sobre vida e morte, religião e existencialismo, ancorados numa forma muito peculiar de falar (quase) sempre com o humor incrustado, e vertidos na comicidade física e relacional do próprio Woody enquanto ator - coadjuvado singularmente pela especial Diane Keaton. Já em Interiors, Woody abstém-se de aparecer em frente às câmaras, provavelmente para que a comicidade inerente à sua figura não crie atrito com o tom solene, austero e sóbrio que o filme veste, à semelhança do que viria também mais tarde a fazer em September (1987) e em Another Woman (1988), onde recupera o espírito existencialista de laivos bergmanianos que iniciou com Interiors.
Existencialismo forrado de angústias e ansiedades interiores como herança familiar que se transporta pelas vidas, de dentro para fora, com neuroses que fervilham e se desenvolvem a partir de uma interioridade em carburação permanente e não necessariamente como resposta imediata a uma agressão ou estímulo exterior - é o universo do cinema de Ingmar Bergman que Woody experimenta em Interiors, mas nunca com a crueldade e ferocidade do sueco. Woody põe o dedo na ferida, mas não escarafuncha como Bergman; a psique atormentada em Interiors busca apaziguamento, não o confronto que vemos em Bergman. Em Interiors há uma camada social que funciona como escudo protetor, impedindo que a expressão interior ecoe sem filtros e sem limitações como no cinema de Bergman, ou seja, Woody não deixa o filme resvalar para a violência física, verbal ou moral, há linhas vermelhas que quase são tocadas, mas que nunca se ultrapassam, ao contrário do que vemos em Bergman. De certo modo, há um ponto de partida similar, mas cujo desaguar é diferente. Olhamos em grandes planos para as irmãs Renata (Diane Keaton) e Joey (Mary Beth Hurth) - há ainda uma terceira irmã, Flyn (Kristin Griffith), mas com menos relevância no filme - e, no rosto feito de lágrimas ou de gotas de suor de Keaton, parece que vemos Liv Ullmann, enquanto que no rosto de grandes óculos de Hurth parece que vemos Ingrid Thulin em 'Luz de Inverno' (1963). Os close-ups de Renata e Joey são uma constante, aos quais se junta Flyn em dois momentos capitais: primeiro, no momento em que ouvimos o padre a celebrar o casamento do pai com Pearl (Maureen Stapleton), a nova mulher, depois do foco individual em Renata e Joey, por fim, a câmara reduz a profundidade de campo face aos restantes, de modo a que possamos olhar, de perfil, só para Flyn, sem interferências; depois, num momento carregado de solenidade, fúnebre, todo ele sem música, em profundo silêncio, os três rostos surgem novamente à vez em grande plano junto ao caixão da mãe que se entregou ao interior do mar.
Todo o filme é feito sem música introduzida, uma absoluta raridade em Woody, como sabemos. E mesmo música diegética, só para celebrar a boda do pai com a bonne vivante Pearl, de modo a que os pares pudessem dançar e, sobretudo, para exponenciar o surgimento disruptivo de Pearl, em antítese com aquela família de intelectuais de classe alta. Além do silêncio solene aquando da cerimónia fúnebre, a primeira sequência de Interiors, numa sucessão de planos interiores da casa, é feita de um silêncio absolutamente ensurdecedor que nos remete para dentro do filme, para a sua interioridade, silêncio que só é quebrado depois com o ligeiro ruído dos primeiros passos. E é nesse silêncio inicial pesado, que se faz sentir, que tomamos desde logo contacto com a sumptuosidade da casa, feita de uma elegância fria, geométrica, sóbria, enxuta, com áreas amplas e cores feitas de tonalidades acinzentadas ou pastel. Essa paisagem de interior estende-se depois a outras casas da família, incluindo a da filha Joey que a mãe - a responsável disto tudo - está a decorar. Esta paisagem interior que atravessa quase a totalidade do filme - quase não temos exteriores - traz-nos à memória Michelangelo Antonioni, pois, tal como no cinema do italiano, a paisagem em Interiors absorve as personagens, que se fundem nela, e se movem como extensão viva em corpos com cores e tonalidades semelhantes - quando a mãe e a filha Joey, juntas, falam encostadas a uma parede, parecem coladas, embutidas na mesma -, assimilando e expressando esse vazio existencial, feito de angústia e ansiedade que aquela paisagem pálida e geométrica, sem sinuosidade, sem alma, sem fulgor, sem vibração, exala. Daí que olhem pelas janelas, no início e no final do filme, em busca de vida no exterior.
Cabe pois à desbragada, mundana e com um quê de grotesca Pearl, que veste vermelho e que num plano à mesa é arrumada junto às várias garrafas de bebidas alcoólicas, trazer essa chama, num choque também cromático naquela lívida paisagem interior onde se move aquela família de classe alta intelectual nova-iorquina; ela que espoletará vida e morte, quase em simultâneo, em sintonia com o mar, junto à casa-palco-derradeiro-para-a-tragédia, o elemento preponderante da escassa paisagem exterior.
Interiors, de Woody Allen (1978)
Visionado no Cinema Nimas, Ciclo Diane Keaton
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Interiors, de Woody Allen (1978)



