DA VAGA REALIZADOR DO MÊS
'O Medo Come a Alma', de Rainer Fassbinder: entre a utopia e a realidade
Em 'O Mercador das Quatro Estações' (1971) já constatáramos o poder da expressividade visual - em detrimento de um naturalismo facilmente coadunável com realismo social - que Rainer Fassbinder impregna no retrato da sociedade burguesa da Alemanha Ocidental no pós-guerra. As personagens exalam, sem filtros e sem máscaras, aquilo que sentem e que pensam, sem disfarces feitos de polidez, do politicamente correto, ou de certas normas de conduta social - pelos seus rostos, pelos seus olhares, pelos seus gestos, pelos seus trejeitos, coadjuvados por vezes com palavras. Tudo isto é enfatizado e empolado pelo sentido magistral de enquadramento de Fassbinder: a sua singularidade marcante na disposição dos protagonistas pelo espaço, pelo décor, apontando-lhes a câmara a partir do(s) sítio(s) certo(s). E se em 'O Mercador das Quatro Estações' a expressividade visual começa no contraste das figuras que compõem o casal protagonista (ele é baixinho e rechonchudo, ela é alta e magra); dois anos depois, em 'O Medo Come a Alma' (1973), Fassbinder, em nova história, acentua o contraste do casal: ela é velha-viúva-alemã, ele é novo-imigrante-africano, acicatando mais ainda o catalisador do preconceito e da coscuvilhice que já presenciáramos na referida obra anterior. Maior o contraste, maior o desafio, maior ainda a mestria do génio alemão - em 'O Medo Come a Alma' o cinema de Fassbinder leva-nos da terra ao céu, passando pelo paraíso, para depois voltarmos à terra, olharmo-nos ao espelho, e percebermos que viajamos entre a utopia e a realidade, incorporando, no final, o escrito que lemos na abertura do filme: "A felicidade nem sempre é divertida".
"Pensar faz uma pessoa ficar triste", diz o imigrante marroquino Ali (El Hedi ben Salem) à velha germânica Emmi (Brigitte Mira), enquanto dançam bem juntinhos, a meia-luz, no bar onde acabam de se conhecer. Mais tarde, é Emmi que lhe devolve a frase quando conversam já na cama, mas ainda antes de irem para a cama. Já em 'O Mercador das Quatro Estações' a irmã (querida) de Hans dizia-lhe que não era bom pensar em demasia, antes pensar de menos, quando este caminha para o abismo, no aprofundamento da desgraça até à fatalidade. Para agarrar a felicidade e viver a utopia pensar não ajuda. Ali não pensa quando uma das duas mulheres do bar - onde os árabes param para beber, jogar e namoriscar com duas alemãs, uma loira e uma morena, que às tantas nos parecem hienas (inclusive, numa das cenas, vemos a loira de maquilhagem borrada, com sombras negras a alastrarem em volta dos olhos e de vestimenta com padrões a lembrar o pelo das hienas) que controlam o território (aquele bar onde Emmi entra por acaso para se abrigar da chuva), sempre sedentas em devorar a carne, leia-se, os corpos dos fortes e jovens árabes - o desafia para ele convidar a velha para dançar; Emmi também não pensa quando aceita dançar com Ali, respondendo-lhe com um "porque não"; ela não quer que ele pense quando o convida a subir a casa dela para um café-conhaque; ele também não pensa quando ela lhe diz que era do partido de Hitler, como o pai, e como quase todos; ela não pensa quando diz ao filho do senhorio que Ali não é inquilino na casa dela, mas sim o noivo, pois vão casar (algo que ainda não tinha falado com o próprio Ali); ele também não pensa quando de imediato lhe diz que sim, que quer casar, naquele momento. E casam mesmo, apenas os dois num registo civil, num dia chuvoso e cinzento, tal como as fatiotas de ambos.
Ela tem vergonha de dizer que é empregada de limpeza, ele não tem vergonha de lhe falar do trabalho que faz e do quarto que partilha com mais cinco árabes. "Desumano", diz ela, juntando empatia à paixão pelo imigrante marroquino - isto enquanto Hitler, que ela apoiara, daria certamente voltas no túmulo. Mas a vida também dá voltas e Fassbinder diz-nos com os seus filmes que, essencialmente, as pessoas são vítimas das circunstâncias que moldam a sociedade. Agora casados, ambos fazem horas extraordinárias para comprarem algures no tempo um bocadinho de céu, de acordo com Emmi - um espaço imaginário, que possa vir a tornar-se físico, onde a utopia possa expressar-se. E mais do que ao casal, Fassbinder resolve dar ao filme e a nós, espectadores, esse tal bocadinho de céu quando senta os dois, sozinhos, frente a frente, a segurarem nas mãos um do outro, precisamente no centro de uma esplanada de jardim/parque com uma imensidão de mesas e cadeiras amarelas, envoltos pelo verde da vegetação, ao som do chilrear dos passarinhos: eis a chegada ao céu, com repouso no paraíso! E até poderia ser um trecho onírico, mas não, é mesmo a utopia desenhada pela expressividade visual - o resto é imaginação. Mas são apenas escassos segundos, logo de seguida, o plano muda para nos mostrar que à distância de alguns metros está um grupo de mirones reprovadores, desde empregados de mesa a outros que Fassbinder decidiu ali plantar como autênticos manequins - ele que tanto gosta e faz uso deles, pensaremos sempre nos manequins de 'As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant [1972]', mas, também em ' O Mercador das Quatro Estações', eles apareceram numa montra a acompanharem Irmgard [Irm Hermann] - e há outros planos similares em que a disposição e imobilidade dos vários intervenientes, estupefactos, quer no bar, enquanto Ali e Emmi dançam, quer na oficina, quando Emmi procura Ali, parecem transformar pessoas em manequins, para servirem e vestirem a ideia, a expressão. Aqueles abutres de olhares fulminantes, à porta, servem para nos dizer que além do paraíso há ainda o purgatório e o inferno.
Ainda antes, num outro espaço, precisamente num restaurante que Hitler frequentava e onde Emmi faz questão de celebrar com Ali o matrimónio de ambos, Fassbinder decide encostar o casal à parede, numa mesa, lado a lado, numa sequência que começa e acaba com o mesmo plano, absolutamente magistral, um dos melhores de sempre, de todo o cinema: com a câmara estacionada ao longe - numa outra divisão do restaurante, separada por uma porta sem porta que se assemelha a um espelho - exponenciando toda a profundidade de campo, olhamos para Ali e Emmi, que olham em frente para nós, como quem está prestes a ser fuzilado, num espaço impregnado do espírito de Hitler. Em vez das SS para executar o fuzilamento, surge mais um homem-manequim, empregado de mesa, especado em frente a eles, com um olhar que dispara, que perfura. E, num profundo sadismo estético, digamos, o plano que surge logo a seguir a esta sequência no restaurante mostra frontalmente os rostos dos três filhos de Emmi, mais o genro que é interpretado pelo próprio Fassbinder, alinhados, dispostos, em sequência, quase em linha, ávidos de saberem o que a mãe tem para lhes dizer - uma vez mais, Fassbinder afasta-se do naturalismo ao posicionar daquela forma tão teatral, tão geométrica, tão pronunciada, os protagonistas -, e quando Ali é apresentado a câmara movimenta-se rosto a rosto para prolongar a incredulidade vivida naquele momento.
A realidade parece comer a utopia, tal como o medo come a alma: na rua, na família, no trabalho, no prédio. Talvez o passar do tempo aliado ao pragmatismo e à amoralidade burguesa da época que Fassbinder denuncia, transversalmente dominantes em filhos, vizinhas e colegas de trabalho, abra caminho à utopia. Mas, com a relativa normalização do casal pela sociedade, surge, simultaneamente, a vontade de Emmi em querer padronizar a relação à sua maneira, descurando hábitos, gostos, cultura, vontades de Ali, asfixiando-o. Novo retrocesso na utopia. E, tal como em 'Cuidado com Essa Puta Sagrada' (1971), a úlcera estomacal, provocada pelo stress e nervosismo (e provavelmente por outras coisas mais), volta a atacar. E, tal como em 'O Mercador das Quatro Estações', há uma música do casal que é cantada ou tocada antes do soçobrar.
Angst essen Seele auf, de Rainer Fassbinder (1973)
Visionado em Filmin Portugal
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'O Medo Come a Alma', de Rainer Fassbinder (1973)