DA VAGA REALIZADOR DO MÊS
'Mamã Küsters Vai para o Céu', de Rainer Fassbinder: vítima de pragmatismo amoral e niilismo
Quer em 'O Mercardor das Quatro Estações' (1971) quer em 'O Medo Come a Alma' (1973) constatámos a contenção das emoções nas personagens de Rainer Fassbinder. A postura física, as falas (quase) mecânicas, a (quase) ausência de afetos, ou a forma como se posicionam no espaço filmado, remetem-nos para a figura do manequim - em 'As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant' (1972) abundam, e coabitam o espaço-quarto-décor-filme com as personagens humanas - que Fassbinder veste em consonância com a expressão que pretende imprimir. Mas ao contrário de Robert Bresson, cujos protagonistas eram modelos rígidos para reproduzir falas e gestos, sem margem alguma para representação, as personagens de Fassbinder têm no rosto, com tudo o que ele consegue fazer, ou não fazer, a sua ferramenta própria de expressão. Na verdade, este controlo de emoções manifestado pelos protagonistas é consubstanciado pela própria intenção de Fassbinder em não espoletar emoções ou sensações, ditas primárias, no espectador. O final utilitarista que vemos em 'O Mercador das Quatro Estações' - imediatamente saídos do funeral de Hans, ainda com a vestimenta fúnebre, a viúva propõe ao amigo-empregado do falecido que seja companheiro dela e pai da filha, para felicidade de todos - e o final fatalista de 'O Medo Come a Alma' - Ali sofre de uma úlcera estomacal e a mulher fica ao lado dele na cama do quarto do hospital, junto a mais alguns enfermos, isto após o médico reforçar a inevitabilidade do sucedido - levam-nos a racionalizar, mais do que a emocionarmo-nos. No desfecho de 'Mamã Küsters Vai para o Céu' (1975), o génio alemão renuncia, de novo, a mergulhar-nos num mar de emoções feito de tiros e lágrimas, surpresa, ação e drama, optando por substituir a mise-en-scène da sequência final pela escrita (literal) dessa derradeira cena do argumento em cima do rosto petrificado, mas vivo ainda, da personagem central - o filme mostra ainda um final alternativo que seria exibido na versão transmitida nos Estados Unidos da América. Fassbinder volta também neste filme a despir as suas personagens de emoções - ocultando, eliminando -, com a exceção de Mamã Kusters (Brigitte Mira), e talvez por isso é que, no fim, ela só poderia ir para o céu.
Brigitte Mira, que dá corpo e alma a Mamã Küsters, é a atriz que foi Emmi em 'O Medo Come a Alma', a velha-viúva-alemã que se casa com um imigrante marroquino, 20 anos mais novo. É verdade que em Emmi as emoções já saltavam cá para fora, mas a força e a coragem da personagem, bem como uma certa frieza com os filhos e até com Ali, aliada a uns ligeiros tiques de resquícios de nacionalismo germânico - inclusive até presente nas suas referências ao passado no partido (nazi) e ao apoio a Hitler -, fazem realçar de sobremaneira Mamã Küsters como figura de emoções genuínas. Tanto assim é que, apesar de sucessivamente enganada, desprezada, negligenciada, persuadida, ela chora, abraça, acarinha, consola-se, sorri, fala com brilho nos olhos, confia, acredita na vida, nas pessoas. Uma dona de casa, operária ao domicílio, esposa fiel de uma vida inteira, e cuidadora da família - um dos filhos e a nora ainda vivem com ela e com o marido, em Frankfurt - é surpreendida pelo anúncio de uma tragédia a envolver o marido, logo no início do filme. Antes, ouvimos a rádio emitir a notícia do assassinato de um patrão, seguida de suicídio, numa fábrica de químicos; entre a montagem e aparafusamento de tomadas elétricas e o cuidar do guisado no fogão da cozinha, Mamã Küsters, juntamente com o filho e a nora, pouco relevo dão à rádio, enquanto falam de carne, químicos e vegetais - Küsters diz que o marido gosta muito de carne, por isso vai juntar as salsichas, enquanto a nora advoga por uma dieta vegetariana, mais saudável. Quando a campainha toca, eis a tragédia contada a seco, sem preparos - o anúncio de despedimentos em massa de operários da fábrica de químicos levou à reação violenta e fatal do marido Küsters, quiçá um consumo de carne excessivo do homem possa ter aumentado os níveis de agressividade.
Este evento desencadeia toda uma corrente, feita de pragmatismo amoral e de niilismo, em volta da viúva Mamã Küsters, que só o génio de Fassbinder seria capaz de expressar tão exuberantemente. O filho e a nora decidem não cancelar as férias marcadas, mesmo que isso implique faltarem ao funeral do pai/sogro, e assim foi; mais tarde, decidem mudar-se, presumivelmente para não terem de arcar com despesas visto que a Mamã Küsters é agora a única a ganhar dinheiro: continua a montar tomadas elétricas em catadupa. A outra filha, Corinna (Ingrid Caven), larga o cabaret duvidoso onde diz cantar, numa outra cidade, para vir ao funeral do pai - nesse espaço dá-se uma cena do mais puro niilismo, magistralmente construído entre palavras e imagens, com o gerente do cabaret, de smoking branco, meio tombado atrás do balcão, de meio cigarro preguiçosamente apagado no canto da boca, a dizer a Corinna que o melhor é beber whiskey, esquecer isso (a morte do pai), e irem para casa foderem como coelhos, e depois, na manhã seguinte, haverá sempre uns pãezinhos quentes para comer -, mas rapidamente salta para outro cabaret, este ainda mais duvidoso - com um gerente tão ou mais niilista que o anterior, igualmente desengonçado, para quem a filosofia não põe comida na mesa, isto enquanto passa a língua pelos beiços -, onde se apresenta ao público como 'A filha do assassino da fábrica'; a morte mediática do pai é uma alavanca para a carreira artística de Corinna, assim pensa ela, que começa a flirtar no retrovisor do jornalista que a conduz a ela e à mãe do aeroporto, posando depois claramente para os flashes, com um ramo de flores, junto à campa do pai.
Essa corrente que cerca e captura Mamã Küsters tem prolongamento nos jornalistas que cobrem o acontecimento em casa da viúva, junto da família, mas também num casal de comunistas que se aproxima dela, e, por fim, num anarquista radical que faz dela um isco. E, ao contrário do que vimos em 'O Mercador das Quatro Estações' e em 'O Medo Come a Alma', Fassbinder introduz personagens com filtros e máscaras, que se disfarçam com pele de cordeiro para atingirem os seus fins: os jornalistas e os políticos - precisamente agentes da sociedade burguesa alemã do pós-guerra, responsáveis pela sua degradação moral. Nos dois filmes anteriores citados, todas as personagens - ora familiares, ora mulheres vizinhas coscuvilheiras, ora vendedores de fruta, ora mulheres colegas de limpeza, ora empregados de mesa ou de balcão - eram vítimas das circunstâncias, de quem molda a sociedade, de quem tem poderes para tal. Küsters é usada por ambos os poderes - comunicação social e políticos -, é cercada e atacada por abutres. E como os enquadramentos de Fassbinder ilustram tão bem esses ataques de sanguessuga, quer pelos jornalistas que fazem um círculo em volta da nora e do genro para arrancarem 'coisas' sobre o marido Küsters; quer pelo jornalista sorrateiro - envolve-se depois com Corinna, alimentando-se um ao outro, num pragmatismo amoral - que se aproxima de Mamã Küsters, solitária na cozinha de casa, para ganhar a sua confiança, e depois expelir sensacionalismo desbragadamente na revista onde trabalha; quer pelo casal do partido comunista que fisga Küsters discretamente e à distância no funeral, para depois andarem ambos literalmente em roda dela já na sumptuosa casa onde vivem, e onde em frente ao espelho de talha dourada - mais um espelho, sempre os espelhos que no cinema de Fassbinder confrontam os próprios protagonistas, mas também os espectadores - o marido comunista profetiza uns dizeres sobre o caminho a trilhar do socialismo, da luta de classes, e da igualdade, para resposta desconcertante de Küsters: "Nem todos podem receber o mesmo porque as responsabilidades são diferentes".
Mas, tal como nos outros filmes, Fassbinder recusa-se, e bem, a deixar-nos lições de moral ou a apontar-nos caminhos que devemos seguir enquanto seres humanos, enquanto sociedade. No limite, mostra-nos coisas para que possamos refletir e fazer diferente.
Mutter Küsters Fahrt zum Himmel, de Rainer Fassbinder (1975)
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'Mamã Küsters Vai para o Céu', de Rainer Fassbinder (1975)