DA VAGA DE SALA
'Jovens Mães', de Jean-Pierre e Luc Dardenne: histórias de cordão umbilical
Após tamanho embate com a realidade, crua e sem condimentos, ao longo de todo o filme - 'Jovens Mães' (2025), de Jean-Pierre e Luc Dardenne -, e com a fatalidade do final de história de 'Tori e Lokita' (2022), precisamente a obra anterior dos irmãos belgas, ainda fresca na memória, diria que, imediatamente antes daquela sequência derradeira ao piano, começou a ecoar na minha cabeça o verso da musica de Tom Zé, "E não vai ter happy end..." - mas afinal teve. Numa transição sublime dos versos verbalizados do poema Adieu [Adeus], de Guillaume Apollinaire (poeta francês, 1880 - 1918), para a expressão musical dos mesmos ao piano, na tal sequência última do filme, os irmãos Dardenne sacam (permitam-me a expressão) um (im)possível happy end! Embalados pelo único e breve momento em que a música (diegética, pois) encontra tempo e espaço no filme, vivemos simultaneamente também o único momento de harmonia e felicidade em família, com mãe, bebé e pai, por mais circunstancial que possa ser - como nos mostrou 'Jovens Mães' em verdadeiras histórias de cordão umbilical. É um happy end possível, a partir de tantas impossibilidades, feito de realidade e esperança, mas sem deixar de ser momentâneo e possivelmente, ou não, passageiro. O comboio que trouxe esta família em construção até à casa onde se fecha o filme bem como o comboio-brinquedo que a primeira das cinco jovens mães solteiras da casa-abrigo recebe - ela e o bebé, na parte inicial do filme -, como presente aquando da sua partida, remetem-nos para esta ideia de caminho, de percurso, de passagem, de paragens, também na vida - vida que também corre e também passa como o comboio.
A partir de um centro de abrigo para jovens mães solteiras em situações de vulnerabilidade - durante um determinado período de tempo têm apoio social, logístico, médico e psicológico para criarem e desenvolverem o vínculo com os filhos, para, a seu tempo, poderem decidir se assumem o papel de mãe ou se encaminham o bebé para uma família de adoção -, no caso em Liège (Bélgica), os já septuagenários irmãos Dardenne desenvolvem um centro de histórias de vida ligadas por cordão umbilical, de mães e filhos, como só poderia ser. Depois de vermos numa fase prematura do filme, como já referi, a primeira das cinco mães da casa-abrigo a seguir em frente como o seu bebé e com o sonho ali ao lado de se tornar revisora dos comboios, somos remetidos para o trilho que cada uma das histórias das restantes quatro raparigas-mães vai seguir. Em todas essas quatro histórias, quatro vidas, o cordão umbilical estende-se dos recém-nascidos para as mães e destas para as respetivas mães. A partir daqueles quatro bebés trazidos à vida, vamos observando uma ligação de causa e efeito gerada pelo impacto das relações que aquelas quatro jovens mães viveram com as suas progenitoras. Portanto, além de serem jovens mães solteiras em situação idêntica de vulnerabilidade - razão pela qual estão juntas naquela instituição social - estão também unidas originariamente por uma relação deteriorada e de fragilidade com as respetivas mães, ou seja, a ideia que o filme vai explorando a partir de uma visão quádrupla.
Jessica (Babette Berbeek) vive obcecada por conhecer a mãe biológica que a entregou ainda bebé a uma família adotiva; Julie (Elsa Houben) é vítima de violência da parte da mãe e do seu companheiro; Perla (Lucie Laruelle) é filha de mãe alcoólica, já falecida, traumatizada pela forma como a mãe num ato de loucura lhe matou o canário; Ariane (Janaina Halloy) é também ela vítima de violência pela mãe e de abuso sexual do padrasto (encoberto pela mãe). Jessica decidiu ter o filho para usá-lo como um meio de afirmação, resposta e ajuste do passado, que para ela é presente e que quer que seja futuro, com a indiferente mãe (biológica); Julie decidiu ter o filho como resposta a uma exigência da tresloucada e perturbada mãe; Perla decidiu ter o filho para 'prender' o namorado, e assim construir uma família à semelhança da irmã mais velha (uma segunda mãe); Ariane decidiu ter o filho para poder renascer através dele, como uma assunção de verdade, uma vitória face ao molde que a mãe lhe incutiu de diluição de fronteira entre a mentira e o seu contrário. Jessica teve o final em aberto, mas não feliz; Julie teve o final desejado, mas não feliz; Perla teve o final possível, mas não feliz; já Ariane teve o final pretendido, em construção, momentaneamente feliz - naquele final ao som do piano com o namorado padeiro e o bebé dos dois.
Esta ligação umbilical extensível e retroativa, que une as quatro histórias e as quatro personagens, aliada a uma câmara que se conecta com o movimento dos corpos, sempre com sentido, promovendo uma diluição magistral do filme na vida, ou da ficção na realidade, são absolutamente fundamentais para que nos liguemos também, enquanto espectadores, a uma história feita de quatro histórias. Até porque, pelo facto de não estarmos muito tempo consecutivamente com cada protagonista, mais difícil a priori se torna essa conexão emocional com a mesma e, por conseguinte, com as suas maleitas. No fundo, é como se tivéssemos quatro curtas, ainda que em visionamento fracionado, juntas numa longa-metragem mas com todas a dialogarem intimamente umas com as outras. Não é para todos, mas é para os Dardenne.
Jeunes Mères, de Jean-Pierre e Luc Dardenne
Visionado no Cinema Ideal
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'Jovens Mães', de Jean-Pierre e Luc Dardenne (2025)



