DA VAGA REALIZADOR DO MÊS
'O Mercador das Quatro Estações', de Rainer Fassbinder: preconceito, desgraça e utilitarismo
Década de 70, Alemanha do pós-guerra dividida por dois blocos, em dois Estados, para Oriente em RDA (República Democrática Alemã), para Ocidente em RFA (República Federal Alemã); nesta última, pelo cinema de Rainer Werner Fassbinder - escolha DA VAGA REALIZADOR DO MÊS (de Junho) -, constatamos de forma singular, sui generis, o legado de cicatrizes que o Império do mal e a guerra inscreveram numa nova sociedade a reconstruir-se por entre destroços. Preconceito, desconfiança, coscuvilhice, utilitarismo, niilismo nietzschiano, pragmatismo, amoralidade, decadência, desgraça, fatalidade, são deveras dominantes. E sem recorrer a eloquentes retóricas, intelectualização, ou diálogos reflexivos, para teorizar, discorrer, desenvolver, desvendar e aprofundar estes modus vivendi e modus operandi, o cinema de Fassbinder prefere plasmá-los, vertê-los diretamente nas personagens - nos seus rostos, nas suas figuras, nos seus trejeitos -, em intensa e constante interligação com a câmara, numa força visual, expressiva, alcançada pelos magistrais enquadramentos: de onde a câmara se coloca para filmar e como os protagonistas são dispostos no décor - Fassbinder é inigualável neste ponto. Em 'O Mercador das Quatro Estações' (1971), conseguimos observar todos esses modus vivendi e operandi mencionados, mas diria que o preconceito, a desgraça e o utilitarismo são os mais salientes.
O preconceito é encabeçado pela (velha) mãe (Gusti Greissl) de Hans (Hans Hirschmuller), e este, por sua vez, personifica a desgraça, como fruto e consequência da educação e trato de que foi alvo por parte da progenitora. A primeira sequência do filme, ainda antes de surgirem os créditos iniciais, ilustra na perfeição essa relação mãe-filho: ele regressa a casa, vindo da Legião Estrangeira (corpo militar composto por voluntários/mercenários), e a mãe recusa-se a cumprimentá-lo, vira-lhe costas, e, acompanhados por um travelling, vemos o filho a andar atrás da mãe para lhe contar que mudou para melhor; ela para, volta-se para ele e aniquila-o com um "quem torto nasce, tarde ou nunca se endireita". Logo de seguida, já noutra sequência, surgem então os créditos em cima da cabeça de Hans, que roda enquanto apregoa: "Peras frescas, comprem, comprem". Uma cabeça que parece um alvo para abater, especialmente quando a câmara faz uma panorâmica em volta dos prédios que cercam o pátio onde Hans está com uma carroça (de madeira) carregada de peras; sensação essa que sai ainda mais reforçada segundos depois num plongée que exponencia visualmente a pequenez de Hans - já de si de baixa estatura -, afundado no avental, ainda por cima com Irmgard (Irm Hermann), a esposa, a surgir também nesse plano com a sua estatura imponente, esguia, realçada mais ainda pela longa perna à mostra, de saia arregaçada, enquanto ajusta a liga da meia. Irmgard representa o utilitarismo; e se saltarmos destes instantes iniciais do filme precisamente para o derradeiro plano, vemos a consagração absoluta dessa premissa e a consumação da tríade: preconceito, desgraça, utilitarismo, por esta ordem. Saídos (literalmente) do funeral de Hans, a viúva, a filha (criança ainda) e o amigo-empregado de Hans estão fechados na carrinha, estacionada, vestidos de luto, quando Irmgard diz ao homem que percebendo ele do negócio, precisando ela dele, dando-se ele bem com a filha Renate, o melhor é juntarem-se, o melhor para todos - a maximização da felicidade para o maior número de pessoas, simplificando o utilitarismo de John Stuart Mill.
Estas três sequências referidas, que ligam o início e o término do filme, obviamente são respaldadas ao longo de 'O Mercador das Quatro Estações', colando a mãe de Hans, Hans e Irmgard a esses três estados: preconceito, desgraça e utilitarismo. Em flashbacks, vemos o desprezo da mãe por Hans, por não ter estudado, por querer ser mecânico, por ser despedido da polícia, pela sua existência, no fundo. No presente, a mãe continua a vulgarizar e a menosprezar o filho perante a família, apoiada por uma das duas filhas (irmãs de Hans) e pelo genro Kurt, duas figuras que se movimentam como apêndices da matriarca, captamos isso quase sem ouvirmos nada deles, e pouco ou nada eles dizem, a força expressiva das imagens é mais do que suficiente - quando Hans tem um ataque e cai naquele chão vermelho, tal como as cortinas, da casa da mãe (a levar-me para o vermelho de 'Lágrimas e Suspiros', de Ingmar Bergman, precisamente no ano a seguir, em 1972), em contre-plongée observamos a indiferença e até o desprezo no rosto de Kurt perante o cunhado tombado. Apenas a irmã Anne (a bela Hanna Schygulla) se opõe ao establishment familiar, confrontando a mãe, defendendo o irmão - e nesses encontros familiares o seu posicionamento físico destoa dos restantes, seja assumindo a cabeceira na mesa de almoço, seja afastada espacialmente dos outros na cena que leva ao desfalecimento de Hans, mantendo depois a lucidez, ao contrário dos restantes, para chamar a ambulância.
Quanto à desgraça de Hans, ela é gradual, vai em crescendo, ao longo da sua vida e concomitantemente atravessa todo o filme, apenas com uma breve exceção em que após a doença contrata um empregado para vender as frutas e ele vira patrão, inclusive, nas entrevistas que Hans faz para recrutar o homem de confiança - isto apesar de o próprio Fassbinder, dando corpo muito fugazmente a uma personagem que almoça com Hans dizer que "ninguém é de confiança" -, os plongées, outrora sobre ele, são agora sobre os candidatos ao posto de trabalho, afundados na poltrona da sala. Sol de pouca dura, a desgraça de Hans é constantemente acicatada pelas memórias: da mãe, da mulher amada cujo pai dela não quis que casasse com um loser como ele - outra vez o preconceito -, do despedimento na polícia, da violência sofrida na Legião Estrangeira, tudo isso parece minar o sentido da vida; cabe ao álcool transportá-lo para a cabeceira da mesa, não a de casa, ou da casa da mãe/família, mas a mesa do bar onde se sentam em torno dele a ouvi-lo outros bebedores; do rosto liberta-se o suor que os grandes planos evidenciam; da boca saem as lamúrias de bêbado; das mãos solta-se a violência que impõe em casa à mulher.
De olhar felino e sorriso sagaz, Irmgard parece perita em encontrar soluções para tocar a vida para a frente, ainda que com o empecilho da desgraça contínua do marido. Prostitui-se quando o marido está acamado no hospital; é empreendedora no negócio das frutas; trama o homem que lhe pode custar a felicidade que ela ainda busca para todos, em casa, com Hans; convoca a mulher amada de Hans para o funeral dele. Esbelta, Fassbinder não se coíbe de mostrá-la nua, sexualmente dominadora naquele encontro de prostituição fortuito, perante a cruz pendurada na parede do quarto, e também na cama com Hans, onde a sua elegância contrasta com a figura rechonchuda do marido. Num dos muitos grandes planos de rosto, quando Hans bebe para a morte, as lágrimas escorrem e cristalizam apenas numa das faces (do rosto dela), talvez refletindo aqui a meia tristeza e o meio alívio pelo final da desgraça.
Händler der vier Jahreszeiten, de Rainer Fassbinder (1971)
Visionado em Filmin Portugal
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'O Mercador das Quatro Estações', de Rainer Fassbinder (1971)