DA VAGA DE SALA - Especial Leffest
Miroirs No.3, de Christian Petzold: vidas através do espelho
A meio do último Verão escrevi sobre 'Céu em Chamas' (2023), o agora penúltimo filme de Christian Petzold. Aí, o rosto da fabulosa Paula Beer incendeia de sedução, de magnetismo e de atração essa bela obra veraneante, numa aura que encontra prolongamento no movimento do seu corpo: uma mescla entre a sensualidade de Hanna Schygulla e a elegância de Margit Carstensen - outras alemãs, como Paula Beer, celebrizadas nos filmes de Rainer Fassbinder -, como referi na altura . Em 'Céu em Chamas', o rosto de Paula Beer é um íman para a câmara de Petzold, que nele se vai estacionando e demorando mais do que nos outros; é um íman para o protagonista que se apaixona por ela, sucessivamente tolhido na sua presença; e é um íman também para nós, espectadores, estarrecidos perante aquela luminosa e transbordante sensualidade. Já em Miroirs No.3 (2025) - visionado este sábado no Cineteatro D. João V (DA VAGA DE SALA - Especial Leffest) -, Petzold parece pedir ao rosto de Paula Beer que condense, em comunhão, a luz e a sombra, reflexos da vida e da morte. Agora, a luminosidade do seu rosto sobrevive apenas no olhar, tudo o que resta neste (novo) rosto, incluindo os cabelos escuros, serve para expressar o sombrio, mas também um vazio que não se preenche.
Logo na sequência inaugural de Miroirs No.3 vemos Laura (Paula Beer) debruçada numa ponte a olhar para baixo, para a água do lago que, logo a seguir, já com ela por perto, cá em baixo, reflete, como um espelho, a luz (do sol) e a sombra (das árvores); isto enquanto carros passam a alta velocidade - um prenúncio do que virá pouco depois - açambarcando toda a sonoridade do local. Os minutos iniciais do filme, até ao acidente que vitima mortalmente o namorado e que a leva até à casa de Betty (Barbara Auer), podem parecer à primeira vista acessórios, até porque é a partir do momento do acidente que Laura e Betty se conhecem e vão coabitar juntas, mas, na verdade, são absolutamente essenciais como radiografia, ainda que breve, do estado de tremenda alienação com que vive Laura, transbordando um profundo esgotamento emocional. Tal é deveras importante porque nos diz, logo de início, que Laura não estará, de seguida, a viver ou a fazer propriamente o luto do namorado que acaba de perder, tal como Betty vive em pleno exercício do luto da filha que se suicidou, aparentemente há pouco tempo; a própria Laura diz depois ao filho de Betty que não se sente triste com a perda do namorado, ou seja, o vazio que a traspassa, desde o início do filme, suga-lhe as emoções ou a capacidade de exprimi-las. Efetivamente, Laura encontra o espelho na filha de Betty que se suicidou - sem saber da sua existência até ao último terço do filme - através da mãe dela, a mulher que a acolheu em casa, logo depois do acidente de viação, e a tratou como se trata uma filha.
Diria que aqui reside a mestria de Petzold, como grande realizador que é. Em vez de colocar Laura e Betty em espelho, em vidas espelhadas de quem faz o luto recente de entes queridos, Petzold vê e vai para lá do espelho, colocando ambas, Laura e Betty, a reverberarem e a refletirem a figura da rapariga que se suicidou, que não chega a ter presença no filme, é 'apenas' o elefante na sala. Através de Betty, Laura veste e vive a rapariga suicida, que estudava e tocava piano como ela (ouvimos prelúdios de Frédéric Chopin e de Maurice Ravel), enquanto através de Laura, a mãe Betty reencarna a figura da filha perdida. Aqueles dois cruzamentos de olhares entre Betty e Laura, para cá e para lá na estrada, ainda antes do acidente, que se prolongam e se conectam algures no domínio da metafísica, têm depois correspondência terrena, uma experiência vivida entre ambas - às quais se juntam depois o marido e o filho de Betty, que deixaram de viver com ela devido aos distúrbios que a morte da filha causou na sua saúde mental - numa paisagem que poderia ser algures entre a vida e a morte. A casa de campo, rodeada de árvores, plantas e flores, de raios de sol e de chilrear de passarinhos, onde Betty vive e alberga Laura, ganha depois rodas de bicicleta e atravessa prados verdes em planície, cheios de couves, por estradas e caminhos que se perdem no horizonte e onde o céu é sempre azul, com nuvens desenhadas de branco, sempre com dias luminosos e solarengos. No interior de casa, a ausência de portas nas portas entre os compartimentos produz a sensação de reflexo de espelho, sensação essa que é exponenciada logo no primeiro plano de Laura em casa de Betty: com o uso de toda a profundidade de campo conseguimos olhar para dentro e ver ao fundo Laura sentada numa cadeira, ainda a recuperar do choque do acidente, como se olhássemos por um espelho, enquanto Betty cá fora fala com os paramédicos, depois é em sentido inverso que vemos, de dentro para fora, de Laura para Betty.
Quando se dão refeições e conversas ao ar livre vem-nos à cabeça 'Céu em Chamas'. E, em Miroirs No.3, dá-se uma sequência em que Laura parece resgatar o espírito de Nadja (a Paula Beer no filme anterior), quando bebe uma cerveja com o filho de Betty, mecânico, na esplanada improvisada da oficina, e num campo/contra-campo vão trocando olhares de uma cumplicidade que se vai construindo e que desemboca em sorrisos e quase gargalhadas ao som da música (The Night, de Frankie Valli & The Four Seasons) que ela lhe pede para ele voltar a pôr a tocar na grafonola da oficina, substituindo a conversa. De repente ficamos com vontade de que aquele clima dos dois se prolongue um pouco mais, mas não é por aí que seguiremos, pois também o filho de Betty vê - e não quer ver - a irmã refletida em Laura.
Acabo de saber que Miroirs No.3 ganhou hoje o Grande Prémio do Júri João Bénard da Costa, não surpreende. Onde e quando houver cinema de Christian Petzold com Paula Beer haverá sempre esse risco.
Miroirs No.3, de Christian Petzold
Visionado no Leffest, no Cineteatro Teatro D. João V
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Miroirs No. 3, de Christian Petzold



