DA VAGA DE SALA - Especial Leffest
Kontinental'25, de Radu Jude: entalados entre memória e futuro
Transilvânia, histórica região na Roménia por onde já andámos no filme de Cristian Mungiu, 'O Exame' (2016), no caso, numa terra sem-nome, inóspita, escura, cinzentona, letárgica, relativamente próxima de Cluj. Cluj ou Cluj-Napoca, a principal cidade da Transilvânia, atualmente reconhecida como a Silicon Valey do Leste Europeu, uma smart city com um hub tecnológico onde jorram startups e unicórnios, atraindo programadores, investidores, nómadas digitais - digamos que no trilho que a Lisboa de Carlos Moedas tem vindo a prosseguir. Às cidades, Cluj ou Lisboa, cabe e resta transformarem-se de modo a ampararem e suportarem as necessidades inerentes ao cluster tecnológico. Habitação, hotelaria e restauração renovam-se, reconstroem-se, reinventam-se, partem do zero se preciso, expurgam o velho, o estabelecido, o verdadeiramente clássico, genuíno e tradicional, e levam a cabo uma profunda cirurgia estética, ou plástica melhor dizendo, que muda as feições intrínsecas da cara de uma cidade, Cluj ou Lisboa. Há poucos meses, soube que o projeto para um novo hotel no centro de Lisboa fez mais uma(s) vítima(s): ainda estou a fazer o luto da minha bifana favorita que de quando em vez saboreava ao balcão do Beira-Gare, o santuário da iguaria que alimentava fiéis há 117 anos; era um verdadeiro local de culto que, aliado à proximidade da estação de comboios do Rossio, facilmente permitia evasões mentais a partir do rebuliço que ali se dava. O projeto de um outro hotel, igualmente de luxo, também no centro da cidade, neste caso em Cluj, dá o mote e o nome ao novo filme de Radu Jude, Kontinental'25 (2025) - em estreia na passada segunda-feira na Culturgest (DA VAGA DE SALA - Especial Leffest).
Um pouco à semelhança do que fizera no sensacional 'Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo' (2024) - o nosso melhor filme do ano transato -, o genial Radu Jude espraia a sua (já identitária) crítica social a partir de três dimensões, que se colam e se interligam: o passado, o presente e o futuro. O passado da memória coletiva, o presente da vida/sociedade atual, o futuro da transformação que já vai carburando. Em 'Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo', vimos o passado da memória coletiva da Bucareste pré-queda do muro de Berlim, em plena sociedade socialista-comunista, a partir de excertos do filme Angela merge mai departe (1981) [Ângela segue em frente], de Lucian Bratu; vimos o presente da vida/sociedade atual romena a acompanhar outra Angela, na sua saga enquanto assistente de produção no dia-a-dia da infernal Bucareste; e vimos o futuro da tal transformação que carbura, um futuro distópico, por meio de realidade paralela nas redes sociais e de propaganda neoliberal. Por sua vez, em Kontinental'25, assistimos desde o início do filme a uma caricatura dessa interligação de tempos: passado, presente e futuro, quando começamos a ver um mendigo a percorrer o Dino Park de Cluj, ladeado por dinossauros que se movem da pré-história, enquanto o pobre homem - antigo medalha de ouro em provas de atletismo - parece mover-se precisamente em sentido inverso, em direção ao homem das cavernas, apanhando um teleférico para seguir caminho a voar. Já o passado mais recente, da história contemporânea, cuja memória coletiva é mais fresca, serve de combustível ao ódio nacionalista entre romenos e húngaros, resquícios da batalha da Transilvânia durante a primeira guerra mundial. Que o diga a agente de execução - conduz-nos nesta viagem um pouco como Angela nos conduziu em 'Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo', ainda assim, não tanto ao volante e com menos obscenidade - que leva a cabo a operação legal de despejo do mendigo, pois a partir daquela cave vai nascer um hotel. Após suicídio do pobre homem que ia virar sem-abrigo - ouvimo-lo espernear na operacionalização do ato fatal enquanto a câmara faz um insert prolongado do papel de ação judicial de despejo -, a agente de execução, húngara a viver na Roménia, é atacada violentamente com vários impropérios em comentários online, que o marido faz questão de lhe ler, todos tendo por base a sua nacionalidade - nacionalismo exacerbado que produz ódio. E ainda pendurados na memória coletiva da história contemporânea, com as cicatrizes que o comunismo deixou por sarar, a mulher agente de execução, no seu processo de expiação de pecados, lembra o marxista, mas antiestalinista, Bertol Brecht, poeta e encenador, a propósito de inocentes e culpados naquele período soviético: se não conspiravam contra Estaline não deveriam ser considerados inocentes, porque no fundo pactuavam com a tirania daquele regime, defendia. Isto a propósito da sua culpabilidade moral no suicídio do mendigo, apesar de legalmente não ser culpada. Humanista e com preocupações sociais, mas peça da engrenagem de um sistema, a protagonista passa a viver um dilema moral e existencial.
No tremendo relativismo que reconhecemos em muitas personagens que passam pelos filmes de Radu Jude, todos aqueles com quem a protagonista se cruza e desabafa, desde o inspetor da polícia, a amiga que trabalha com causas de solidariedade social, o antigo aluno de direito na altura que ela era professora, até ao padre, todos lhe pedem também que relativize a coisa. Ou porque são ossos do ofício, ou porque a morte de um mendigo contribui para a redução de odor a fezes e urina no Verão, bem como de sofrimento alheio de quem vê o sofrimento de quem sofre com o frio do Inverno; ou porque há catástrofes que são bem piores em Gaza ou na Ucrânia; ou porque o não-suicídio é um mandamento da nossa existência, que só diz respeito a cada um de nós.
E além do mendigo, antigo atleta medalhado, que foi esquecido pelo futuro tecnológico de Cluj, ainda que antes de morrer tenha sido importunado por um cão robot que não o largava na rua - no futuro até os cães vão abandonar os mendigos e sem-abrigos -, também o antigo aluno de Direito da agora agente de execução foi abandonado ou rejeitado pelo hub tecnológico da cidade, não totalmente, porque contribui para alimentar as bocas dos infinitos programadores e engenheiros que em meia dúzia de cliques acionam a sua ida de bicicleta com a mochila de pronto-a-comer. Sunt Román [sou romeno] assim lemos na mochila, num letreiro rosa fluorescente, bem piroso, mas necessário para evitar crimes de ódio racial na estrada. Num dos melhores planos do filme, à noite, Jude aproveita o letreiro para iluminar e quiçá proteger a cena de sexo estridente entre aluno e professora em pleno jardim.
Nacionalismo, redefinição das cidades, desenvolvimento tecnológico desumano, flagelo da habitação, em crítica ou sátira social, bem mordaz, como só Radu Jude sabe fazer, equilibrando extremamente bem uma linguagem feita de tempo e espaço para os diálogos com tempo e espaço para as imagens. Até do ponto de vista arquitetónico o filme é bastante rico, com um sem-número de planos de novos bairros residenciais, condomínios, de nova construção, tudo muito padronizado e replicado, em contraste com velhas casas de telhados ainda em telha. Numa sequência de dois planos, vemos um edifício antigo de arquitetura brutalista com duas árvores à frente, para darem vida e sombra, e de seguida dois prédios gémeos de arquitetura futurista com um feixe de luz artificial que sobe e desce entre ambos - passado e futuro no presente.
Kontinental'25, de Radu Jude
Visionado no Leffest, na Culturgest
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Kontinental'25, de Radu Jude (2025)



