DA VAGA REALIZADOR DO MÊS
'Roleta Chinesa', de Rainer Fassbinder: jogo de espelhos
Às vezes, quando vagueio pelas redes sociais - em especial no X (antigo Twitter) -, dou por mim a pensar nas hipotéticas razões que motivam determinados utilizadores a optarem por apresentar uma identidade fictícia, sustentada por um qualquer nickname e uma imagem que substitui um retrato do rosto. Serão vários os motivos, certamente; todavia, parece-me que a vontade e/ou a necessidade de representar na vida - até poderá em alguns casos funcionar ao contrário, ou seja, alguém representar mais na sua vida social, laboral ou familiar, enquanto cidadão/indivíduo, e, por sinal, ser mais genuíno e mais condizente com a suas crenças, valores e características por meio da persona que decide expressar na rede social -, em suma, viver uma vida dupla, será provavelmente uma grande força motriz. Sensivelmente a meio de 'Roleta Chinesa' (1976), de Rainer Werner Fassbinder, dá-se uma cena colateral com uma (não) personagem que num ápice escarrapacha, da forma mais simples possível, o tema da representação na vida: um cego, de óculos escuros e bengala, recebe esmola da governanta da mansão (onde se dá praticamente todo o filme); de seguida, a partir de um outro compartimento da casa, vemos (nós e a governanta) novamente o cego-pedinte, desta feita a livrar-se dos óculos escuros e da bengala para entrar no Mercedes que conduz e seguir o seu caminho. Um momento de representação na vida que Fassbinder injeta para refletir como espelho de um modus vivendi da sociedade burguesa germânica da altura, como um espelho da própria narrativa do filme. Os incontáveis vidros espelhados da mansão-filme vão materializando e refletindo essa duplicidade, entre o ser e o representar,
num jogo em que os próprios protagonistas parecem eles próprios tornarem-se espelhos uns de outros.
Consequência de vidas duplas, o casal Christ (Margit Carstensen e Alexander Allerson) encontra-se inesperadamente na mansão (casa de campo da família): um casal que vira casais porque ambos os Christ vieram refugiar-se no campo com os respetivos amantes, Kolbe (Ulli Lommel), dela, e a mademoiselle Cartis (Anna Karina, rosto mais do que conhecido da Nouvelle Vague), dele. Quando o marido Christ, acompanhado da mademoiselle, abre a porta da sala e se depara com a esposa Christ e Kolbe enrolados no tapete da sala, Fassbinder decide alimentar por escassos segundos o frisson - até para estar em sintonia com uma certa atmosfera hitchcockiana pontuada pelos excertos lapidares da música que vai e vem - para rapidamente fazer emergir a profícua capacidade para representar na vida que o cineasta alemão identifica nesta sociedade burguesa de classe média-alta: como tal, riem-se, abraçam-se e preparam-se para um jantar a quatro. Mas ao contrário de Alfred Hitchcock, Fassbinder prefere a surpresa ao suspense. E para quem confunde os dois status, Hitchcock, mestre-maior do suspense, esclareceu-nos que, ao contrário da surpresa, o suspense partilha informação com o espectador: lembremo-nos de 'Vertigo - A Mulher que Viveu Duas Vezes' (1958), nós, espectadores, ficamos a saber antes do protagonista (representado por James Stewart) que aquela mulher era efetivamente a mesma mulher que ele achava morta (representada por Kim Novak). E diria que, em 'Roleta Chinesa', Fassbinder parece investir no efeito surpresa essencialmente no primeiro terço do filme, ancorado no espaço que escolhe para acolher a narrativa (a grande casa de campo), com os oito protagonistas a juntarem-se no seu interior, e na expressividade visual dos dois anfitriões: a governanta (Brigitte Mira, outra vez) e o filho Gabriel (Volker Spengler), duas figuras inusitadas, revestidas ambas de uma aura de mistério, com um quê de sinistro, potencialmente capazes de fazerem algo acontecer no seio daquela cimeira de casais e amantes, aos quais se junta mais tarde a filha do casal Christ (Andrea Schober) - uma adolescente que sofre de doença que a limita na locomoção, pelo que se apoia em duas canadianas que impõem o seu deslocar compassado pelo soalho de madeira - e a sua perceptora, que recorre à linguagem gestual para se expressar. Governanta e filho, inofensivos, afinal, e também eles a representarem nas suas aparentemente monótonas vidas, cabe-lhes no momento trágico do filme assumirem as suas responsabilidades de classe - a classe operária, leia-se, trabalhadora - sendo os únicos a socorrerem a perceptora após o tiro infligido pela mãe Christ, que, para não disparar contra a filha, decide alvejar a sua aliada maior.
Voltando ao jogo de espelhos. Quando a filha do casal propõe que joguem, todos, à roleta chinesa, eis que aquela sala de jantar - preenchida por vitrinas plantadas a meio, ora com garrafas do sempre necessário álcool para as personagens de Fassbinder, ora com a aparelhagem de som, que acaba por ser negligenciada - vira arena, isto depois da filha dos Christ, com todo aquele jeitinho petulante, mandar tirar a mesa onde os oito jantaram, inclusive os dois caseiros, para que os peões possam agora mover-se pelo espaço-tabuleiro. E a partir deste momento, a câmara emerge mais ainda como elemento decisivo na fricção que se vai gerando - muito mais do que as falas sempre inexpressivas e que parecem sair de gravadores. A sala-arena é também agora teatro da vida. À câmara cabe fundir vida, teatro e cinema num só corpo, ora serpenteando em volta dos protagonistas, ora alternando planos de conjunto com grandes planos (de rosto), estes com mais ou menos zoom - no caso de Anna Karina, não é necessário tanto foco, pois a esclera (parte branca) tão expressiva dos seus olhos faz a devida compensação -, ora apontando para os vidros para que possamos ver a duplicidade materializada no reflexo dos espelhos. Quase que ignoramos totalmente o que vai sendo dito naquele jogo, naquela sala-arena, para nos determos com verdadeiro
deleite na construção imagem-espaço, e nos seus desdobramentos, que a câmara, os rostos e o posicionamento dos atores, em simbiose, criam.
Ainda na arena, mas já depois do tiro, o casal Christ abraça-se - os restantes já partiram - e a câmara faz uma panorâmica de 360º em volta deles, numa junção dos dois espelhos centrais: o marido e a esposa Christ. Momentos antes do tiro, durante o jogo, o amante Kolbe ensaia uma aproximação física à outra amante, a mademoiselle, elogiando-lhe a sua beleza, quase ao ouvido, procurando assim o seu espelho. A governanta e a perceptora refletem-se em espelho como alvos (mais) fáceis para os demais no final do jogo, da arena: a governanta é apontada pela maioria como sendo a figura que, imaginariamente, no nazismo, seria comandante num campo de concentração - afinal era a mãe Christ - e a perceptora acabou por levar com a ira da senhora Christ. Por fim, Gabriel e a filha do casal Christ reverberam um no outro: compreendem-se mutuamente.
Despedimo-nos, por agora, de Rainer Werner Fassbinder em DA VAGA REALIZADOR DO MÊS, mas voltaremos a outros filmes
do génio alemão, mais tarde ou mais cedo, indubitavelmente.
Chinesisches Roulette, de Rainer Fassbinder (1976)
Visionado em Filmin Portugal
Adquira o Livro NA VAGA DE ROHMER - Escritos sobre (65) filmes | O ANO ZERO
À venda em Portugal
À venda no Brasil

'Roleta Chinesa', de Rainer Fassbinder (1976)