DA VAGA DE SALA - Especial Leffest
Calle Málaga, de Maryam Touzani: o quase abandono das mãos
Se em 2019, em vez de 'Adam', Maryam Touzani fizesse a sua estreia em longas-metragens com Calle Málaga (2025) - filme estreado em Portugal este sábado à noite, na Culturgest (DA VAGA DE SALA- Especial Leffest), com a presença da própria realizadora e do coargumentista, produtor e marido (também ele realizador) Nabil Ayouch -, certamente não teria suscitado em mim um quinto do fascínio que levou a que me convertesse logo ali num admirador confesso do seu cinema. E se, em 2022, Calle Málaga surgisse em vez de 'O Azul do Cafetã', como segunda longa metragem depois de 'Adam', por certo Maryam Touzani não estaria hoje incluída no meu grupo relativamente restrito dos maiores realizadores em atividade. Posto isto, não diria que me desencantei com Touzani, pois o valor das suas duas primeiras obras é inestimável, e, como tal, cá permanecerei fiel e expectante pelo seu reencontro futuro com essa identidade tão bem cozida (de cozinhada) e tão bem cosida (de costurada) pelas mãos das personagens que canalizaram, para depois soltarem lentamente, uma delicadeza e uma sensibilidade supremas que a câmara de Touzani, em profunda comunhão com o tempo e o espaço, tão bem expressou em 'Adam' e em 'O Azul do Cafetã'. As mãos que geram, que criam, que constroem, que transformam, que tocam, que percorrem, que sentem, que unem, que falam, que dançam, que amam, num registo artesanal, revestido de humanidade, de ancestralidade, feito em ritmo compassado, em que a consistência se consolida com a lentidão devida - tudo isto parece esfumar-se em Calle Málaga.
Depois de filmar nas cidades de Casablanca ('Adam') e de Salé ('O Azul do Cafetã'), Touzani regressa às suas raízes familiares em Tânger, cidade onde cresceu e onde sempre viveu a sua avó de origem espanhola, da Andaluzia, a quem a realizadora dedica o filme. Na conversa pós projeção, Nabil Ayouch dizia que Tânger é aquela cidade completamente à parte do restante território marroquino, quer na identidade, quer na diversidade e heterogeneidade, quer na interpretação e aplicabilidade das leis de Marrocos. Touzani resgata a consagrada Carmen Maura (Maria Ángeles), que tão bem conhecemos do cinema de Pedro Almodôvar, para ao mesmo tempo resgatar a memória da avó, precisamente na mesma rua (Calle Málaga) e no mesmo prédio. Através da figura de Mária Ángeles - brilhantemente interpretada por Carmen Maura -, uma espanhola que vive desde sempre em Tânger, viúva há mais de 20anos, Calle Málaga incide e investe essencialmente em dois caminhos: por um lado, mostrar o quão forte pode ser o vínculo de uma pessoa aos lugares, partindo da casa, prolongando-se na rua e extravasando na cidade, daí que por mais de uma vez vejamos, de dia, a protagonista à varanda a olhar para a rua, para os vizinhos, a saudar e até a pedir dali os mantimentos à mercearia mais próxima, e, à noite ou de madrugada, o olhar dela a conduzir a panorâmica da câmara que recolhe e envolve a cidade numa vista à janela; por outro lado, fazer dessa resistência de Mária Ángeles em manter-se ligada umbilicalmente ao lugar onde viveu toda uma vida, rejeitando mudar-se para junto da única filha e dos netos em Madrid, uma resistência à aceleração do envelhecimento do ser humano e em particular da mulher, aproveitando Touzani para, ao sabor da liberdade de Tânger, cidade portuária, mais do mundo do que de Marrocos, e por intermédio de uma atriz e personagem espanhola - ainda para mais com toda a singular sensualidade de uma vida que o cinema de Almodôvar lhe incrustou na pele -, extravasar e libertar pela nudez dos corpos, especialmente o de Carmen Maura, o desejo sexual tão reprimido na sociedade marroquina, especialmente nas mulheres, como é óbvio.
Diria que estes dois caminhos que Touzani perseguiu em Calle Málaga foram bem delineados e interligados do ponto de vista do argumento, e o savoir-faire de Carmen Maura conseguiu dar-lhes corpo. Faltou foi touzanizar este argumento no filme. Até parece um paradoxo, mas num filme em que Touzani está a retratar tão de perto a sua própria experiência, de certa forma as suas emoções vividas em família, sai daí um filme com muito menos densidade emocional que os anteriores. Imbuída no espírito de Tânger, e absorta na influência espanhola que até mete o futebol de nuestros hermanos a pintar cenas do filme, há como que um desvincular com aquela ancestralidade que vemos nas ruas e nas mãos dos marroquinos e que se repercute com forte evidência no desenrolar dos acontecimentos. Touzani apressa-se em Calle Málaga como nunca a vimos apressar-se: num sopro a filha chega, diz a Maria Ángeles que vai vender a casa onde a mãe vive e esta vai parar a uma residência para idosos em Tânger, onde num ápice dão-se meia dúzia de planos e, voilà, a septuagenária está de volta à casa de uma vida, ainda que à socapa. Não há maturação relacional alguma entre a mãe e a filha que já não se veem há não sei quanto tempo, temos apenas uma introdução colada mecanicamente, sem mãos. Mãos que são aqui e ali resgatadas quando surge em cena o antiquário, o homem da loja de antiguidades que comprou, para depois revender - coisas do destino -, a mobília da casa de Maria Ángeles. Talvez por se aperceber da ancestralidade deixada (e esquecida) em 'Adam' e 'O Azul do Cafetã', a marroquina recorre ao velho antiquário e às suas mãos, que colam capas de enciclopédias gastas e envelhecidas ou que consertam gavetas dos móveis para daí advir um toque subtil e involuntário da mão dele na mão de Maria Ángeles, que depois passa a cumprimento de mãos e assim se vai estendendo, até às mãos que dançam ao som de Toda una Vida, cantada por Maria Dolóres Pradera - está para Calle Málaga como a cantora Warda al-Jazairia esteve para 'Adam' - e tocada no gira-discos recuperado com o típico método negocial marroquino.
E por falar em gira-discos, aquela luz quente e intensamente amarela que emana de dentro dele mistura-se com luzes semelhantes dos candeeiros, todas se unem para refletir nos cabelos loiros a fugir para o branco de Carmen Maura e no seu rosto moreno, e depois têm extensão na vestimenta amarela que Maria Ángeles traz naquele momento - lembramo-nos que é o cinema de Touzani que estamos a ver. Esta harmonia entre décor e protagonista(s), trabalhando luminosidade, cores, padrões de roupa e de papel de parede, é uma marca d'água que não se perde. E é a estes momentos do filme que nos agarramos e que fazemos por relativizar a (nova) necessidade de música introduzida - não diegética - para nos guiar, para nos dar as mãos, ao invés de escutarmos o eco interior das personagens, como habitualmente em Touzani, nem que seja em profundo e demorado silêncio, como tão bem sabe fazer.
Calle Málaga, de Maryam Touzani (2025)
Visionado no Leffest, na Culturgest
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Calle Málaga, de Maryam Touzani (2025)



