DA VAGA DE SALA - Especial IndieLisboa

Stéphane Pires • 5 de maio de 2025

'Santa Iria', de Luís Miguel Correia: demasiadas voltas para tão poucas paragens


Viajemos até à Trafaria, por agora. Num dos filmes que vi no último Doclisboa - não cheguei a escrever sobre o filme em questão -, recordo-me bem de sair da Sala Manoel de Oliveira, no Cinema São Jorge, e ouvir desabafos em forma de suspiro de algumas das pessoas que acabavam de assistir, ou de resistir, àqueles 80 minutos a visionar 'Na Trafaria' (2024),  um filme-ensaio de Pedro Florêncio, coadjuvado por alguns dos seus alunos na Universidade NOVA FCSH. Muito possivelmente, aqueles espectadores sentiram-se defraudados nas suas expetativas; esperariam, por certo, um filme-documentário do estilo mais narrativo, mais descritivo, mais guiado, mais falado, e talvez musicado, onde as gentes, a terra, o rio-mar da Trafaria dialogassem diretamente, coloquialmente, de modo entretido, aqui e acolá informativo, com o espectador. Certamente não esperariam ficar desarranjados nas cadeiras da sala de cinema em busca de sentido, interpretação e respostas para as imagens e os sons que lhes chegavam aos olhos e aos ouvidos; certamente não anteviam essa convocatória para participarem na construção de uma narrativa através daquelas imagens, feitas de longos planos fixos, de escassez de diálogos, de muitas repetições. 'Na Trafaria'  confere o tempo e o espaço para que os processos, as tarefas e as rotinas do quotidiano daquelas gentes, naquela terra, naquele rio-mar, se deem, possibilitando-nos, deste modo, com paciência, constatação, reflexão e tomada de consciência, devidas e necessárias, construir o nosso mapa mental da Trafaria - nosso, de cada um, leia-se. Na altura em que vi 'Na Trafaria', lembro-me de ter tweetado que o filme me fez lembrar Chantal Akerman; especialmente D'Est   (1993). Da Trafaria viajemos para Santa Iria da Azóia. 'Santa Iria' (2025),  de Luís Miguel Correia,  em exibição ontem à noite na Culturgest, na Competição Nacional do IndieLisboa, dá-nos tantas e tão boas imagens, mas não nos deixa relacionar, submergir, refletir e viajar com (as imagens) e a partir delas como deveríamos, apesar das 3 horas de filme. Uma certa inquietação, por um lado, um determinado receio do tédio, por outro, transparecem na forma como somos puxados, importunados, apressados, interrompidos, na relação que tentamos estabelecer com as imagens e os sons (ruídos diegéticos), seja pelos sucessivos trechos sinfónicos de Beethoven, Tchaikovsky, Edvard Grieg, entre outros mais, seja pelos diálogos.


'Santa Iria' reserva muito tempo para determinadas cenas, mas dá pouco tempo para cada plano (ou são curtos ou muito curtos); uma tendência constante ao longo de todo o filme, o que faz com que a abstração e a reflexão por parte de quem vê - tão relevantes no cinema que se debruça sobre o quotidiano, a realidade - fiquem praticamente esvaziadas, em detrimento de um suposto ritmo, de uma suposta dinâmica, de um suposto movimento, de um suposto entretenimento, de uma real alienação. Nos exteriores, a música introduzida contribui para a secundarização das imagens, mesmo reconhecendo mérito na relação harmoniosa por vezes obtida - pela montagem, entre música e imagens, sobretudo nos movimentos dos carros, a curvarem, a pararem, em fila, nas curvas, nos stops, nos cruzamentos, bem como o movimento sincronizado das cabeças do próprios motoristas -, a sua utilização é excessiva, culminando no suplício final, precisamente nos últimos minutos do filme: já moídos por quase 3 horas de visionamento, Luís Miguel Correia decide pôr-nos às voltas, a nós, espectadores, à câmara, aos drones-aviões telecomandados no céu, incessantemente, freneticamente, com a música a intensificar e a agudizar os movimentos até nos exaurir, ad nauseam. Talvez tenha sido a forma (desagradável, diga-se) encontrada para exponenciar e fazer-nos levar connosco, pós-filme, a afetação que o movimento e o ruído constantes de carros, motas, aviões e comboios, na terra e no céu, provocam naquela terra suburbana (de Lisboa), da qual o realizador é filho.


Já nos interiores, são as conversas - e a sucessiva alternância de planos, reforço - que nos fazem desligar das imagens e seguir ao ritmo dos diálogos que vamos ouvindo: no clube de futebol masculino sénior; no futsal feminino; no centro-dia; nas formações de literacia digital; na oficina; na mercearia. Pelo meio lá fomos descortinando o velho funcionário do clube a olhar para o vazio em solitário; a velocidade alucinante, contranatura com os supostos movimentos dos corpos, com que os velhos do centro-dia jogam dominó; o velho e a velha que leem a quatro olhos e com quatro mãos uma revista em que o virar de página custa e demora; o descascar de batatas abrutalhado que engrossa a casca que vai para o lixo na cozinha do centro-dia; ou a varinha mágica gigante na panela que parece um martelo pneumático.


Na verdade, sempre que o filme deu mais espaço e tempo às imagens, relacionando-as, também pela montagem, ganhou consistência, ficou mais pleno, mais seguro, interpelando-nos, nessas ocasiões, para uma tentativa de construção de um mapa (mental) de Santa Iria, daquela terra e daquelas vidas suburbanas. Assim constatamos, quando a câmara de Luís Miguel Correia - diga-se, sempre sem se fazer notar nas pessoas de Santa Iria - aponta para a florista para dor cor(es) ao filme e, claro, para nos mostrar a seguir que só pode ser dia de finados, tal a romaria ao florido cemitério; pelo meio, a câmara capta um funeral a decorrer, mas mantém a óbvia distância de salvaguarda; numa bela sequência, a câmara aponta para fora do cemitério e vemos não muito longe pessoas a fazerem joggings e exercício no parque, uns correm outros morrem: vida e morte separadas por uma fronteira (parede do cemitério) ténue. Assim constatamos também, quando a tesoura da costureira que corta os tecidos e ajuda a fazer a bainha das calças do polícia dá lugar à tesoura que corta o frango na churrasqueira, acabado de sair da grelha e pronto para o take away, onde o ruído da brasa que assa não precisa de música a acompanhar. Assim constatamos também, quando saltamos do céu para a terra, do avião que passa (uma constante) para a enxada que a velha vigorosa empunha para cavar e plantar o cebolo; mais acima, entre o céu e a terra, a estrada, onde os carros passam quase sem se verem; quem vemos é o filho da velha da enxada, que, de rosto banzado por aqueles ruídos e movimentos, desiste de ajudar a mãe; na horta suburbana ainda espreitamos sem ouvir Pavarotti e o seu CD que serve silenciosamente para afugentar pardais. Assim constatamos também, quando do clube de futebol, das táticas do treinador, saltamos para a igreja, para o ato de contrição, com o padre a guiar os fiéis - futebol e Igreja, duas instituições que aglomeram o povo.


E mesmo com demasiadas voltas e tão poucas paragens, Luís Miguel Correia vai-nos deixando planos gerais, de dia e de noite, que poderiam muito bem ser usados como diferentes postais de Santa Iria: à noite, com as luzes dos carros que se movem e as luzes dos postes de iluminação que fixam; de dia, com a paisagem urbana feita de outdoors, anúncios, grafitis, autocarros RL com letreiro a apontar caminho para a capital (ora Campo Grande, ora Gare do Oriente), comboios a chegarem e a partirem entre o fumo das chaminés industriais, com o rio no horizonte e a ponte Vasco da Gama na mira.


'Santa Iria', de Luís Miguel Correia (2025)

Visionado no IndieLisboa, Culturgest



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'Santa Iria', de Luís Miguel Correia (2025)

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