DA VAGA DE SALA - Especial IndieLisboa
The Sealed Soil, de Marva Nabili: clandestinamente livre
Anunciado como o filme mais antigo realizado por uma mulher no Irão, entre os filmes disponíveis - nunca teve honras de apresentação pública no Irão -, tornou-se, consequentemente, no meu primeiro filme (visionado) de uma autora iraniana. The Sealed Soil (1977) [O Solo Selado] é o filme; Marva Nabili é a mulher que o fez. Ontem, na Cinemateca, da Secção Diretor's cut do IndieLisboa, chegou-nos esta pérola singela. Nabili mergulha num Irão mais do que profundo, rural, rudimentar, arcaico, pobre, ultraconservador, fundamentalista, de crenças e crendices - na antecâmara da Revolução Islâmica (em 1979, começaria o regime teocrático, ainda em vigor, dos Ayatollah) e da consequente queda da monarquia autocrática (pró-ocidental) do Xá Reza Pahlavi -, ainda assim, tão semelhante ao Irão que compatriotas seus nos têm trazido ao longo do tempo, até aos dias de hoje: 'Onde Fica a Casa do Meu Amigo' (1987) e 'Através das Oliveiras' (1994), ambos de Abbas Kiarostami; ou '3 Rostos' (2018) e 'Ursos não há' (2022), de Jafar Panahi, são disso exemplos. Uma jovem mulher, com o peso que os seus 18 anos naquele Irão representa, permanece solteira, rejeitando sucessivos pretendentes para matrimónio, uma profunda anormalidade para a família, para o chefe (uma espécie de líder espiritual da aldeia, como o xerife que vimos em 'Ursos não há'), para as outras mulheres. Nabili escolhe-nos e convoca-nos, a nós, espectadores, para sermos as suas únicas testemunhas, privilegiadas por sinal, da sua clandestina (vontade de) liberdade.
A escolha do plano de abertura do filme é absolutamente reveladora da visão que Nabili quer passar através de The Sealed Soil e da tal convocatória para que sejamos as únicas testemunhas: demoradamente, com a câmara fixa, vemos a protagonista sozinha, sentada nos seus humildes aposentos - vive com a família -, a acariciar, desenrolar, pentear os longos e lisos cabelos pretos, antes de tapá-los, primeiro com o hijab, depois ainda com uma burca, que solidifica o aprisionamento. Em antítese com o irmão, que passa o dia a rezar a Alá no tapete persa - que ora se enrola ora se desenrola, ao ritmo das rezas, das refeições e das visitas do chefe -, a jovem mulher ocupa-se das indispensáveis tarefas do dia-a-dia: prepara a fogueira, no exterior da casa, que serve como fogão ao ar livre para os cozinhados; ajuda a irmã mais nova a vestir-se para rumar à escola; lava a loiça no riacho; ruma ao campo para colher folhas para o indispensável chá, assim julgo ser. Enclausurada com a família e outros vizinhos numa aldeia fortificada, onde um arco em pedra sinaliza e baliza a entrada e a saída na masmorra - uma espécie de último reduto (por sinal está por um fio, avisa o chefe, que anda a ver casas na cidade) -, sempre que parte para o campo, a câmara estaciona nesse arco, a porta sem porta da aldeia, à espera que a protagonista caminhe até ela, até à saída da clausura: uma clausura efetiva e cuja passagem para o exterior daquele arco e a viragem à direita que o plano-sequência alimenta, rumo ao campo - não sem antes vermos do outro lado, na estrada principal, uma cancela de uma espécie de um posto fronteiriço por onde as crianças da escola passam, para lá e para cá, mas por onde ela não circula -, materializa a sua liberdade.
É no campo, sempre à beira-rio, sozinha, entregue à natureza e aos pensamentos, que a jovem mulher repousa na sua liberdade, entre o cortar e o apanhar das folhas que trará de para casa, isto após uma longa caminhada debaixo de sol - longa porque a profundidade de campo na estrada é maximizada e confere-nos essa perceção ótica da distância -, liberdade essa consubstanciada na libertação dos cabelos, do hijab e da burca, para que também eles (os cabelos) possam respirar. Num ato que é proficuamente repetido algumas vezes ao longo do filme, esta ida ao campo, à beira-rio, um momento de liberdade, de libertação, de ser, de pureza, chega mesmo a ser acompanhado pelo corte integral do som do filme, chamando-nos à introspeção e até a uma certa solenidade de um ato profundamente humanista. E é num desses momentos à beira-rio que, agora ao som de uma tromba de água da chuva, Nabili exponencia a libertação daquela mulher, mantendo-nos como únicas, mas efetivas, testemunhas, desnudando-lhe as costas na sua plenitude, num ato agora de limpeza do corpo e da alma - teria passado cerca de 1 hora de filme, neste instante, e poderia acabar aqui que seria, na mesma, um filme inesquecivelmente bonito, singelo.
Mas Nabili ainda nos quis dar mais algumas coisas. Tremendamente sublime aquele enquadramento em que a nossa jovem mulher lava a loiça no riacho, de frente para a câmara e de costas para três coscuvilheiras, e vemos-lhe as pernas até ao joelho, só nós, uma vez mais. Nesta liberdade clandestina, a protagonista, que vai aprendendo a ler à socapa, vai baixando a cabeça em casa e na aldeia, respondendo com sepulcrais e cortantes silêncios, até ficar possuída, a certa altura, assim julgam as outras mulheres quando ela tem um ataque de choro e gritos, raivosos e compulsivos, por entre as galinhas e os pintainhos. E de tanto olhar para a cancela, para o lado de lá, um dia o seu caminho terá de por lá passar.
The Sealed Soil, de Marva Nabili (1977)
Visionado no IndieLisboa, Cinemateca
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The Sealed Soil, de Marva Nabili (1977)