DA VAGA DE SALA - Especial Doclisboa

Stéphane Pires • 24 de outubro de 2025

'As Estações', de Maureen Fazendeiro: panorâmicas da circularidade do tempo


Cresci a ouvir, e até a ler, a lenda da minha aldeia transmontana - verdadeiro património histórico e cultural da terra. Sucintamente: um rei mouro, por altura das incursões muçulmanas na Península Ibérica, estabeleceu-se naquele território, que controlava e comandava em cima de um cavalo; certo dia, o feio e mau rei mouro - tinha uma orelha de burro e outra de cão, imagine-se - encontrou uma bela rapariga na serra e pediu-lhe, ou ordenou-lhe, que lhe catasse a cabeça enquanto poisava a mesma no seu colo; entretanto, a rapariga conseguiu que o vilão adormecesse e desatou a fugir com o seu irmão - ambos pastavam o gado na serra -, furioso, assim que despertou do sono, o rei mouro montou a cavalo atrás da(s) suas presa(s): matou o irmão, mas não conseguiu apanhar a rapariga, que viraria santa, pois esta suplicou a uma grande fraga que se abrisse para ela se esconder no seu interior, dito e feito. Ancorada nesta lenda, a história encarregou-se de fazer daquele lugar um espaço de culto: uma capela com o nome da rapariga santa. Esta quinta-feira, no Cinema São Jorge, lembrei-me da lenda da minha terra de infância e juventude enquanto via 'As Estações' (2025), da luso-descendente Maureen Fazendeiro, aquele que até agora é o meu melhor filme na presente edição do Doclisboa. Maureen Fazendeiro resgata o misticismo pelas lendas do Alentejo a fim de dar corpo(s) e vida à pré-história cravada em rochas daquelas terras - particularmente as antas, monumentos do megalítico -, entroncando esse período na região com a consequente investigação de dois arqueólogos alemães naquele território já na história contemporânea (anos 40, século XX, por altura da segunda guerra mundial), com ramificações até ao presente, aos dias de hoje, e com olhar para o futuro, da relação e confronto entre autoritarismo e resistência -  é a circularidade do tempo que as panorâmicas da câmara de Maureen fazem espraiar, com parcimónia, pela natureza, na vida que se dá, na vida que floresce, na vida que se recicla e que também vai resistindo nos prados verdes e floridos ou por entre os sobreiros do Alentejo.


Na conversa pós-filme, na Sala Manoel de Oliveira, Maureen falou do artigo do jornal Público - a longa investigação dos arqueólogos alemães Leisner na primeira metade do século XX sobre as antas do Alentejo -, há quase 10 anos, e de como esse foi o gatilho para rumar a terras alentejanas, região que até então não conhecia - Maureen vive em Lisboa, mas nasceu e cresceu em França -, e começar a escavar a sua história. Podemos dizer que a escavação foi longa e profunda. Maureen complexificou, cruzando tempos, ora vividos, ora imaginados, ora contados, ora documentados, ora fabulados, ora cantados, mas, simultaneamente, manteve-se sempre com os pés na terra, na realidade terrena, ao ancorar-se nos campos alentejanos que ainda jorram vida - das cabras que correm, dos cabritos que nascem e são expelidos em andamento, do leite que se extrai das tetas, dos prados verdejantes, dos sobreiros que crescem para o céu - e que uma das muitas ternas, suaves e longas panorâmicas, ainda numa fase embrionária do filme, ilustra: a câmara parte da terra castanha, propriamente dita, circula e abre o campo até às árvores, para depois estender o horizonte pelo ar.


A circularidade do tempo, entre a pré-história e a contemporaneidade, nunca sai propriamente dos campos alentejanos do presente. As figuras das lendas ganham corpo e alma nestes campos; a voz germânica que ecoa a correspondência trocada entre os arqueólogos alemães que andam pela Vidigueira ou pela Igrejinha (Arraiolos) - terra onde Salazar teve 24 votos em 3 mil eleitores, ouvimos - e a compatriota no país de origem (em plena segunda grande guerra) repousa nas imagens daqueles campos ou nas ligeiras incursões até às povoações em volta - há um plano que me ficou na retina a propósito disto, quando ouvimos a leitura alemã de uma carta à boleia do interior da carrinha (atual) da biblioteca itinerante, cheia de livros, e num travelling para trás olhamos por uma janela quadrangular que nos mostra o caminho, como o tempo, a passar. Sublime! 


Também no presente, nas conversas com os mais velhos, as lendas, em especial a do Charro, o homem que "há mais de 2000 anos, dizem", e diz um dos convivas que repousam ao sol, foi capturado e arrastado por um cavalo a mando da autoridade de então por este falar mal de quem mandava, "era contra o regime, a ditadura, dos cartagineses", ouvimos ainda na mesma conversa, e cruzamos, agora pelos dizeres, novamente os tempos: do Charro, nas memórias repassadas entre gerações, e do Estado Novo, agora pelas memórias vividas, terrenas. Voltamos aos campos e é lá que ouvimos a voz que relata o trabalho de sol a sol, as primeiras greves dos camponeses que o Partido Comunista incentivou, seguida da reforma agrária, para depois se voltar atrás - nos campos do agora, a câmara e a montagem desdobram-se para nos dar harmonia entre o que vemos e ouvimos, e sim, o propósito é conseguido.


Nesta circularidade do tempo, a safra da cortiça prossegue ciclicamente, sob a lei do machado. E é a percorrer lentamente um grande e velho sobreiro, a partir do tronco, que a câmara parece uma mão que toca e desliza com suavidade num corpo, do tronco continua em movimento, quase a ralenti, até aos galhos e folhas que crescem em direção ao céu em múltiplas ramificações: um plano verdadeiramente poético, acompanhado pelo chilrear dos passarinhos, primeiro, e pelo cante alentejano, depois, que encarna todo o espírito do filme.


 'As Estações', de Maureen Fazendeiro (2025)

Visionado no Doclisboa, no Cinema São Jorge


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'As Estações', de Maureen Fazendeiro (2025)

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