DA VAGA DE SALA
'A Vida Luminosa', de João Rosas: da magia da sala escura até à beleza dos cemitérios
Anacronismo; acaso; a vida que corre. Espelhar no cinema a realidade de jovens urbanos dos tempos atuais e fazê-lo sem a constância, quase omnipresença, de smartphones e redes sociais é uma corajosa afirmação de anacronismo. Um anacronismo romântico, no melhor sentido que daí possamos extrair, que confere tempo e espaço para diálogos (presenciais), de mãos livres e com as mentes ligadas pela conversa que se dá; um anacronismo romântico que devolve à sala de cinema (dos cinemas com história e identidade, não daquelas salas que se disseminam pelos centros comerciais) o seu devido lugar como poiso social, cultural, intelectual, de encontros, olhares, paixões e magia; um anacronismo romântico que ainda contempla jogos de snooker nos espaços de diversão noturna; um anacronismo romântico em que as livrarias e/ou papelarias independentes ainda resistem, a custo; um anacronismo romântico que afirma sem pudor a existência de um rapaz/homem sensível, delicado, frágil até, nos antípodas do machismo, misoginia ou masculinidade tóxica tão efervescente nos dias de hoje. E quando os telemóveis e as relações digitais não fazem parte da história sobra terreno para o acaso emergir, porque será sempre uma alternativa ao planeamento, à premeditação, mas também porque terá como seus aliados os olhos, nos olhares desocupados, despertos a estímulos e abertos à imaginação. Uma vida que corre, que segue o seu curso, tão mais próxima da realidade, é sempre difícil de recriar no cinema, pois o risco de alienar a narrativa é maior, mas também mais desafiador. Repetindo: anacronismo; acaso; a vida que corre - 'A Vida Luminosa' (2025), de João Rosas, estreante em longas-metragens de ficção, é massa feita desses ingredientes. Se o protagonista central tem 24 anos, por sua vez, o realizador tem 43 - idade muito próxima da minha - e esse hiato de duas décadas entre ambos confere à história mescla e uma certa amplitude temporal que nos permite olhar para 'A Vida Luminosa' como um filme (de vida) dos anos 90 ou de vida em 2025.
Uma certa angústia existencial do jovem Nicolau (Francisco Melo), bem patenteada nas relações, momentos e conversas que vai tendo com as inúmeras mulheres com quem se cruza - a namorada que o deixou (deprimido) há 1 ano, mas volta quase no final do filme; a melhor amiga, Inês (Francisca Alarcão); a francesa que o devolve à vida, Chloé (Cécile Matignon); a rapariga das sessões na Cinemateca; a roommate catalã; a jovem que mete conversa no Cosmos Campolide e vai de boleia com ele na bicicleta -, assim como o acaso - que traz Chloé no início do filme e que depois a resgata mais à frente para ligá-la a Nicolau - fazem ressoar o cinema de Éric Rohmer. Essa impressão rohmeriana é ainda mais reforçada pela figura de Nicolau que, vestido de preto, a tocar música (baixo, no caso), e com um je ne sais quois semelhante, faz lembrar Melvil Poupaud em 'O Conto de Verão' (1996). E quando Chloé diz a Nicolau que adora as tardes de sexta-feira em Lisboa, automaticamente teletransportei-me até à Chloé - ambas boas desencaminhadoras de homens indecisos - de 'O Amor às 3 da Tarde' (1972), também de Rohmer. Mas, na verdade, essa delicadeza, sensibilidade e fragilidade, já referidas, que Nicolau transporta com ele são até mais evidentes no Paul de 'Éden' (2014), de Mia Hansen-Love; e do ponto de vista estilístico diria que é no cinema de Hansen-Love que encontro maior paralelo: os diálogos nunca são muito extensos e as imagens pesam tanto ou mais, e reclamam sempre espaço e tempo; a linearidade da história, da vida que corre sem parar, sem grandes transmutações, como um rio, ou como o comboio que Nicolau vê muitas vezes a passar; e a sensibilidade da câmara, bem evidenciada quando se detém nos cruzares de mãos na sala escura, alternando com planos dos olhos mais que brilhantes de Nicolau enquanto olha para a tela; acrescentaria ainda um travelling lateral no cemitério - cemitério porque Chloé está a fazer uma tese de doutoramento sobre arquitetura da morte, num comparativo entre cemitérios em Portugal e França - em que Chloé segue ligeiramente à frente de Nicolau, sempre a tagarelar enquanto ele a ouve e a olha de modo embevecido, como que a ser puxado e guiado por ela rumo à vida, ao encontro da luz, sendo resgatado da morte emocional a que estava vetado desde a partida da namorada; e, se quisermos, ainda no cemitério onde Nicolau e Chloé caminham e dialogam em serpenteio, num plano-sequência, podemos viajar até à India, até 'Maya' (2018), de Hansen-Love, para o passeio do casal protagonista na harmonia entre a natureza e a arquitetura ancestral. E, no que toca à valente assunção do tal anacronismo romântico, fui parar ao cinema de Jonás Trueba: um assumir de um certo desfasamento - feito de romantismo, de classicismo, de qualquer coisa de retro - no tempo, mas sem perder conexão com o presente, com a realidade, numa Madrid (de Trueba) com vicissitudes que a assemelham à Lisboa de João Rosas.
Mas independentemente desta viagem que 'A Vida Luminosa' me possibilitou - e que bela viagem - até Rohmer, Hansen-Love e Trueba, há uma marca distintiva no cinema de João Rosas (cujas curtas-metragens ainda não tive o privilégio de conhecer, mas lá iremos, e vamos sempre a tempo), um cunho identitário que desabrocha: mostrar a vida que corre, mas num campo o mais aberto e alargado possível, não ficando, parando ou demorando-se onde é expectável que fique, que pare ou que se demore; não voltando onde é expectável que volte; mas sim renovando as experiências e prosseguindo a viagem - o tal comboio que passa e que Nicolau observa. Rosas não quis aprofundar a relação de Nicolau com a amiga Inês, o presumível interesse dela por ele, lançou apenas o engodo. Rosas não quis dar dia após a noite à rapariga que meteu conversa com ele, que o seduziu, que sofria de males precários idênticos aos de Nicolau, aparentemente uma sintonia, mas que não passou daquela noite. Rosas apagou da história a rapariga que Nicolau contemplava nas salas da Cinemateca, precisamente após o momento em que as luzes se ligaram, as mãos de ambos se descruzaram e ela partiu sem nada lhe dizer - ele permanece sentado na sala que se esvazia após a exibição de 'A Marcha Nupcial' (1928), de Eric von Stroheim -, como que uma preservação da magia da sala escura: as mãos deles tocaram-se, agarraram-se, cruzaram-se, mas os olhos mantiveram-se colados à tela, ainda que com o brilhozinho. Rosas não quis que Nicolau fosse mais do que ouvinte e ombro amigo da catalã que veio para Portugal para viver com o namorado português e agora estão separados. Rosas quis resgatar Chloé, desaparecida desde os instantes iniciais do filme, para esta iluminar a vida de Nicolau.
É deveras impressionante que o filme tenha conseguido compactar tanto, tantos caminhos, tantas reflexões, tantas inquietações, partindo da figura de Nicolau, a viver como muitos jovens num conflito existencial, numa fase-terra-de-ninguém cada vez mais prolongada entre a saída de casa dos pais e a autonomia plena adiada. 'A Vida Luminosa' vai sinalizando o choque geracional, por via da relação entre Nicolau e os pais; a precariedade dos jovens, com várias personagens a falarem dos trabalhos temporários e de desenrasque que vão fazendo; a multiculturalidade que se vive em Lisboa - curioso aquele plano da Praça do Martim Moniz onde os imigrantes asiáticos jogam críquete; também em BAAN (2023), Leonor Teles trouxera imagem idêntica no mesmo espaço -, uma autêntica sociedade das nações tão bem musicalizada no filme com aqueles laivos de catalão e francês, mas também os efeitos da livre circulação de pessoas no amor, nas relações, no futuro das mesmas; o capitalismo e a sua doutrina neoliberal, verborreia ridicularizada naquela entrevista de trabalho numa empresa de marketing com vista para a rotunda do Marquês de Pombal, símbolo de empoderamento: "Um colaborador é um amigo", ouve Nicolau, e, se é para ouvir, antes sejam citações de Robert Bresson na Cinemateca ou então de Jean-Paul Sartre na livraria/papelaria ( a Tigre de Papel) para onde acaba por ir trabalhar; ou ainda a crise generalizada da habitação na Europa, quando Chloé diz que em Paris uma campa no cemitério de Montmartre é maior que o apartamento dela.
João Rosas é, de hoje em diante, um realizador a seguir muito (mas muito) atentamente pelo NA VAGA DE ROHMER.
'A Vida Luminosa', de João Rosas (2025)
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