DA VAGA DE SALA - Especial Doclisboa

Stéphane Pires • 18 de outubro de 2025

Le Lac, de Fabrice Aragno: ao sabor da natureza


Diria que tenho mais fotografias do que propriamente memórias do Lago de Genebra - a cidade onde nasci e vivi até aos cinco anos. Quis o destino e o acaso que o mítico jet d'eau [jato de água ou repuxo] que embeleza o Lago de Genebra se tenha mudado comigo, na forma de réplica, para Mirandela, para decorar o Rio Tua - uma ideia feliz que o já falecido José Gama, à altura presidente da autarquia transmontana, decidiu importar da cidade helvética. Na verdade, o lago que banha Genebra - e que abraçou o nome da cidade, especialmente quando é dela que se fala - é o Lago Léman [Lemano] que é alimentado pelo Rio Ródano, que nasce nos Alpes suíços e se estende até território francês. Coucher du Soleil sur le Lac Léman (1874) [Pôr do Sol sobre o Lago Lemano], do pintor francês Gustave Courbet, talvez seja a obra mais reconhecida, mas outras pinturas do realista francês, bem como de outros pintores, tiveram o Lago Léman como inspiração e paisagem. Também inspirado nas telas de Courbet e de outros, o suíço Fabrice Aragno  criou Le Lac (2025) [O Lago] - a sua versão cinematográfica. Diretor de fotografia, montador, produtor, responsável pelo som, entre outras coisas, nos últimos filmes de Jean-Luc Godard, Aragno  veio ontem ao Cinema São Jorge (DA VAGA DE SALA - Especial Doclisboa) dizer-nos que é um experimentador e que, para este filme, decidiu comprar um barco à vela para metê-lo no lago e começar a experimentar a coisa. No lago, a partir do barco, as imagens foram captadas ao longo das quatro estações do ano, para depois misturar e montar o condensado produto final. Uma atriz de profissão e um velejador profissional formam o elenco que acompanham Aragno  nesta viagem.


Só nos apercebemos de que é numa regata no Lago Léman - dura 5 dias - que o casal Anna (Clotilde Coureau) e Vincent (Bernard Stamm) vão participar porque vemos a azáfama de vários barcos à vela e dos respetivos tripulantes a partirem ao mesmo tempo. Nem antes - nos minutos iniciais do filme - nem depois - rapidamente o casal fica entregue a si próprio nas águas do lago e assim se mantém até ao final - experienciamos essa sensação do decurso de uma prova competitiva. Anna e Vincent estão em três estados que se mesclam: sozinhos, juntos e com a natureza. Depois da frenética sucessão de planos telegráficos para acicatar ainda mais o frenesim do início da regata, já em sintonia com a calmaria no lago, ao sabor da leve ondulação, é o rosto estático que em Anna a câmara mais procura e é no corpo em movimento que em Vincent (a câmara) mais se detém. Faz sentido que assim seja: ela é atriz, ele é velejador. No rosto dela, entregue ao vento e ao sol, parecem passar mil pensamentos, numa viagem mental que recorda, que reflete, que enquadra, que analisa, que divaga. No corpo dele, os movimentos parecem expelir as emoções, para depois debaixo de água serem resgatadas.


Uma longa, difícil e extenuante, mas, ao mesmo tempo, bela, apaziguadora e relaxante regata feita a dois, num barco minúsculo, dia e noite, pode ser a mais perfeita metáfora de uma vida de um casal. Quando as nuvens escurecem e se fundem, a chuva cai grossa, o vento sopra em tom dominador, as águas agitam-se e é preciso segurar o barco, juntos, unidos, a dois, a quatro mãos, mesmo que as mãos de Anne e Vincent pareçam por vezes evitar o toque umas nas outras - há dias e noites assim. Quando a tempestade parte, volta a calmaria e com ela a introspeção salpicada pela contemplação: na aurora ou no crepúsculo, ambos (Anna e Vincent) parecem distantes, um do outro, mas, simultaneamente, parecem juntos algures numa linha que os une até ao sol; como um estado intermédio, a meio caminho entre a relação que os dois vivem no dia a dia: Aragno introduz cenas do casal no quotidiano de casa, ora deitados um sobre o outro no jardim solarengo, ora afastados em diferentes compartimentos no escuro.


Com a síndrome de diretor de fotografia incrustada, Aragno oferece-nos planos que nos tiram o fôlego, em que sustemos a respiração e expiramos lentamente e em profundidade para voltarmos a nós e à realidade da sala. Faz uso do céu, desdobrando-se em nuvens que aclaram e escurecem, até ficarem algures entre o cinzento e o preto, para depois fazerem expelir água e relâmpagos, para depois dar lugar ao sol que espreita ou que se esconde, que nasce e que se deita no horizonte, para a seguir ser a vez das estrelas brilharem nesse mesmo céu; faz uso da iluminação elétrica que cintila a partir das casas que se encostam ao lago, na calada da noite, enquanto Anna e Vincent tocam nas velas como quem puxa os lençóis para dormir; e faz uso da água do lago para nela refletir essa luz quente que vem das casas em volta - num plano geral é amplificado ao máximo esse reflexo resplandecente sobre as águas; transcendental - e para sentirmos as gotas da chuva a misturarem-se com a água do lago e assim vê-lo (ao lago) em diferentes tonalidades: além do azul, o quase preto como as nuvens carregadas ou o verde como sumo de kiwi e lima.


No final, não sabemos o que fica desta viagem-regata-jornada para o casal. Não temos música e quase nem diálogos para ousarmos interpretar ou tirar conclusões. Não é o que mais importa. Le Lac é, acima de tudo, arte em estado puro. 


Le Lac, de Fabrice Aragno (2025)

Visionado no Doclisboa, no Cinema São Jorge



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Le Lac, de Fabrice Aragno (2025)

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