DA VAGA DE CASA
'O Paraíso Queima', de Mika Gustafson: três irmãs juntas em piloto-automático e um parêntesis
Desde que comecei a sentar-me o mais acima possível nas salas de cinema passei a constatar o número considerável de pessoas - claro que varia de sessão para sessão - que não ficam até ao término do filme. Presumo que algumas dessas pessoas sejam sacudidas por imprevistos de última hora ou por imperativos de agenda, digamos assim, mas, certamente, muitas outras abandonarão a sala como manifestação de desagrado, aborrecimento, deceção, impaciência, desilusão. E se ficarem até ao fim? Talvez sejam surpreendidas, talvez fiquem mais agradadas, talvez guardem outra memória do filme, ou talvez constatem mesmo que o filme é mau ou até uma perda de tempo. Sou daqueles que acreditam que um único plano pode valer pelo filme, resgatá-lo ou até salvá-lo, mesmo que não faça dele uma grande ou extraordinária obra, como, por exemplo, The Grief of Others (2015) [‘O Luto dos Outros’], de Patrick Wang. Todavia, bem sei, há também filmes que tortos nascem e nunca chegam a endireitar-se, muitas vezes provocando-nos desconforto, desarranjo, incómodo, em doses cavalares, como, por exemplo, 'A Sala de Professores' (2023), de Ilker Çatak. Mas há também filmes que nascem e se desenvolvem bem, de modo harmonioso, até a um determinado momento em que decidem criar disrupção, uma espécie de efeito surpresa, mas acabam por autodestruir-se, como, por exemplo, Una Sterminata Domenica (2023) [Um Domingo Interminável], de Alain Parroni. E há filmes que, logo desde início, irrompem pelo ecrã para nos enervar e atordoar, podendo precipitar o abandono da sala ou o turn off do comando de casa. Não fosse eu um convicto resistente que nunca desiste de um filme antes dos créditos finais e assim teria acontecido com 'O Paraíso Queima' (2023), primeira longa-metragem de ficção da sueca Mika Gustafson. Quando decide abrandar daquele desenfreado ritmo inicial, o filme consegue mostrar-nos, gradualmente, que não quer ser (mais) um retrato de realismo social feito de negligência parental e serviços de proteção de crianças e jovens, com relações de pais e filhos e decisões judiciais, mas apenas debruçar-se num verão de três irmãs: uma jovem, uma adolescente e uma criança, deixando progenitores e serviços sociais a pairarem como sombras, como cães que parecem lobos na madrugada, mas nunca com rostos.
Coragem, desordem, arrojo, capacidade de desenrasque, folia, salve-se quem puder, entreajuda, amor incondicional, ilusões e desilusões, pintam o modus vivendis de Laura (Bianca Delbravo), 16 anos, Mira (Dilvin Asaad), 12, e Steffi (Safira Mossberg), 7, três irmãs que vivem sozinhas em casa, num bairro social algures na Suécia. Ouvimos a certa altura Laura dizer que a mãe já não vem a casa desde o Natal - além disso, mais nada sabemos sobre os pais das raparigas ao longo de todo o filme. O momento em que Laura atende uma chamada telefónica dos serviços sociais, a quererem falar com a mãe para combinarem uma visita (de monitorização) a casa, é pois um momento de viragem feliz para o filme - em antítese com a própria narrativa -, isto depois daqueles minutos iniciais de ritmo desenfreado feito de múltiplos planos, em constante alternância, aos quais se junta uma câmara desnorteada, exponenciando e hiperbolizando os movimentos bruscos, desconcertantes e até selváticos das três irmãs no caos das suas rotinas. Se assim continuássemos mais tempo, não seríamos mais do que corpos inertes, exauridos, tontos, arrastados e amassados por um rolo compressor. Mas após essa chamada, a câmara começa a procurar mais o rosto de Laura e a poisar nele. Sem contar às irmãs sobre a ameaça - a visita dos serviços sociais a casa sem a presença dos pais levará consequentemente à institucionalização -, a apreensão toma conta de Laura, ela que se assume como tutora das mais novas.
Em dissonância com as irmãs e as restantes raparigas do grupo de amigas - rapazes não entram - em folia e efervescência, ao som de clássicos de reggaeton de há 20 anos, nas festas nas piscinas das casas - temporariamente vazias - que ocupam para se refrescarem naquele verão quente escandinavo, Laura vai-se isolando, refletindo e partindo em busca de uma mulher-mãe-fingidora. Goradas as possibilidades da tia, que vive afastada dos sobrinhos numa caravana, e da vizinha, que tem um bar no bairro e que desenrasca vinho a Laura e pensos higiénicos a Mira (a quem chegou agora o período), é pois numa visita acidental a casa de uma desconhecida, Hannah (Ida Engvol), que Laura parece ter encontrado uma terceira via. Com o surgimento de Hannah, mais velha que Laura, já casada e mãe de uma criança, uma bela loira de olhos azuis e de olhar acutilante, também a câmara parece ter desvendado uma outra vida para o filme: a contemplação. Aliás, há um momento simbólico, pouco depois de ambas se conhecerem, com as duas a olharem para um quadro do colombiano Fernando Botero (pintor e escultor, 1932-2023) em casa de Hannah, onde uma mulher segura um gato no colo, ambos com formas redondas, volumosas, como é apanágio nas obras do artista que chegou a reproduzir Mona Lisa com esse mesmo exagero formal - "porque é que a mulher é tão gorda?", questiona Laura. Mais tarde, numa galeria de arte, observamos as duas 'penetras' a olharem para as grandes telas afixadas isto depois de bebericarem e petiscarem num buffet sem serem convidadas.
Mas a contemplação que Mika Gustafson e a sua câmara incutem nos momentos em que Laura e Hannah passam juntas - essencialmente nas casas pontualmente vazias que ocupam para estarem arriscadamente dentro de outras vidas, como personas, mirando coisas, lendo diários, ouvindo música nos vinis, vestindo roupas, fumando charros, dançando e relaxando naqueles aposentos sumptuosos - encontra a simbiose perfeita na combinação dos rostos de Laura e Hannah: além da beleza singela, há sagacidade e carência em conflito mútuo e recíproco. Parece até que neste momento só a duas, em que a música agora não é latina de reggaeton, mas sim mais sofisticada e/ou introspetiva, Gustafson se esquece do resto do filme, do trilho do filme, das outras duas irmãs. Laura parece ver em Hannah tudo condensado numa só pessoa: mãe, irmã mais velha, amiga, amante; já Hannah parece ter em Laura um escape à sua rotina de mãe e de esposa e assim vestir outra persona - e por falar em persona, e por estarmos na Suécia, no país de Bergman, a certa altura Hannah a teatralizar aquilo que seria a sua encenação perante os serviços de proteção a crianças e jovens, fez lembrar personagens de Liv Ullman quando falava a ritmo acelerado. E Gustafson não parece lá muito interessada em descodificar mais esta relação e ligá-la ao restante filme, ganhando na contemplação - inclusive no beijo que é iluminado pela luz do sol -, perdendo um pouco no encadeamento da história, mas ao passar de Laura para Mira e de Mira para Steffi aquela brincadeira com língua, mãos e dedos que Hannah fez a Laura, a realizadora sueca carimba aqui o papel de Hannah na narrativa, ou seja, a de assistente emocional que Laura, a irmã mais velha a fazer papel de mãe, necessita com os seus parcos 16 anos.
Depois do largo parêntesis para a relação Laura-Hannah, a odisseia daquela irmandade é mesmo para prosseguir até ao fim da linha; e voltamos ao caos do quotidiano na casa das irmãs, inclusive agora com discussões e lágrimas, mas também com silêncios, abraços e sorrisos - afinal, era este mesmo o propósito do filme.
Paradiset brinner, de Mikka Gustafson (2023)
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'O Paraíso Queima', de Mikka Gustafson (2023)