DA VAGA REALIZADOR DO MÊS

Stéphane Pires • 19 de outubro de 2023

'Conto de Outono', de Éric Rohmer: a vitória do (meio) acaso


O acaso pode ser das coisas mais magníficas da vida, sobretudo quando funciona como catalisador para pessoas se cruzarem e consequentemente se conhecerem. Bem sei que há quem prefira chamar-lhe destino, outros preferem chamar-lhe coincidência, quanto a mim, prefiro chamar-lhe acaso, aceitando que o acaso é também uma coincidência; o 'por acaso', que os franceses apelidam de par hasard, termo que em português se assemelha foneticamente ao nosso 'azar', pensando bem, é composto essencialmente de sorte ou de azar; e como a sorte e o azar pesam nas nossas vidas… Na maioria das vezes não nos apercebemos ou nem pensamos nisso. O conhecer pessoas por acaso rivaliza, digamos assim, com o conhecer pessoas enquadradas em contexto, seja de amigos (amigos de amigos, conhecidos de amigos, familiares de amigos), seja de família (amigos de familiares, conhecidos de familiares), seja de trabalho (colegas e pessoas que frequentam o mesmo espaço físico); e rivaliza ainda com o conhecer pessoas por premeditação, atualmente mais via redes sociais (com o Tinder à cabeça), antes através de anúncios classificados em jornais e revistas.


Conheci algumas das pessoas mais importantes e decisivas da minha vida por acaso, mas também conheci por acaso pessoas cuja presença e contacto foram fugazes, mas que, pelas experiências que foram, ficaram para sempre na memória. É com muita pena que vejo progressivamente a força do acaso a perder-se; costumo dizer que a década de 90 foi a última do par hasard, precisamente antes do grande boom da Internet, por tudo aquilo que ela (a net) transformou e reconfigurou no que respeita às relações humanas (e sociais), quer pelos novos canais de interação e comunicação que potenciou, quer pelo tempo que nos roubou, quer pela atenção que nos retirou ao que nos rodeia. Hoje já não aguardamos pela nossa vez no centro de saúde sem termos os olhos colados ao ecrã do telefone, de onde só saem para outro ecrã: o da fila de atendimento. O conhecer pessoas por acaso vive cada vez mais atrofiado, seguindo um caminho sem retorno, perdendo aos pontos para o conhecer pessoas enquadradas em contexto e para o conhecer pessoas com premeditação. Éric Rohmer é, de todos os realizadores de quem vi filmes até hoje, aquele que mais e melhor se dedicou ao tema do acaso, e às pessoas conhecerem-se por acaso, par hasard. Em todos os seus 'Contos das Quatro Estações', todos eles na década de 1990, a última do par hasard, o acaso predomina e é influenciador, seja no 'Conto de Primavera' (1990), seja no 'Conto de Inverno' (1992), seja no 'Conto de Verão' (1996), mas é no 'Conto de Outono' (1998) que Rohmer foca o acaso como ideia primária e central da sua história, confrontando-o com as outras formas de as pessoas se conhecerem.


Desta feita, neste 'Conto de Outono', Rohmer decidiu largar a sua Paris e as suas praias da Bretanha para rumar ao campo, à província, mais a Sul de França, concretamente ao départment de Drôme, por entre Saint-Paul-Trois-Châteaux, Bourg-Saint-Andéol e Montélimar, perto dos Alpes, e onde os vinhos Côtes-du-Rhône ditam lei. Magali (Béatrice Romand) é uma orgulhosa viticultora, gosta de sentir-se como artesã e não como exploradora, pela forma como lida com a terra da sua vinha, rejeitando o uso de herbicidas, deixando as ervas crescerem; viúva, solitária, apesar de mãe de dois filhos ausentes, procura no trabalho a fuga à solidão, como a própria reconhece. Isabelle (Marie Rivière, bem conhecida pelo seu papel no 'Raio Verde', 1986) é a fiel amiga, que, sempre que pode, escapa-se da sua livraria na vila para passear-se com Magali pela vinha e pelos verdes campos envolventes; o vento sacode os cabelos de ambas e o horizonte sem fim à vista dá azo às conversas; para Isabelle as pessoas da cidade sonham mais do que as do campo, para Magali no campo as pessoas também sonham, mas é mais com dinheiro; é a dicotomia vida na cidade / vida no campo que Rohmer sempre que pode vai explorando, aqui atribuindo o romantismo aos da cidade e o pragmatismo aos do campo. A jovem acutilante e bela Rosine (Alexia Portal), que finge namorar com o filho de Magali, e vai alimentando um caso passado com o seu professor de Filosofia, completa o triângulo de mulheres que vão 'equacionar' as três formas distintas de conhecer pessoas, melhor, de conhecer um homem para a viúva Magali. Magali representa o conhecer pessoas por acaso; Isabelle representa o conhecer pessoas por premeditação, querendo forçar o acaso; Rosine representa o conhecer pessoas enquadradas em contexto.


Isabelle vê com bastante naturalidade a ideia de conhecer alguém através de um anúncio de jornal, preparando um perfil, como nos Tinder(s) de hoje; bem, não nos esqueçamos que a história vive-se na província, lugares pequenos em que os encontros fortuitos eram muito mais raros e difíceis, mesmo à época, do que numa grande cidade como Paris, em que as pessoas tropeçavam facilmente umas nas outras e onde a conversa entre ambas rapidamente surgia. Para Magali colocar-se num anúncio é como colocar-se à venda, por princípio não cede à visão mais progressista (não necessariamente melhor, pelo contrário), digamos assim, de Isabelle; mais alinhado com a visão de Magali está o professor de Filosofia de Rosine, que, ao ver a fotografia de Magali mostrada pela jovem, recusa interessar-se por alguém via foto, algo redutor. E, por falar em fotografias, o que dizer da sensibilidade de Rohmer ao enquadrar os rostos de Magali e Rosine - ambas morenas de cabelos encaracolados, com fisionomias algo semelhantes e com enorme cumplicidade na história - aproveitando toda a luz solar disponível naquele outono e exponenciando todo o padrão de cores da estação: o verde da erva e das árvores, o castanho alaranjado das folhas caídas, e mais verde e mais castanho alaranjado nas vestimentas de ambas, criando autênticos idílicos retratos bucólicos.


E no fim ganha o acaso, pelo menos para um dos dois, é assim a vitória de um meio acaso, isto após um emaranhado de suposições, alimentado por afinidades e identificações, ou pelo seu contrário, com um revestimento de dissertações sobre vulgaridade mundana e vulgaridade moral, sobre envelhecimento do vinho, sobre tipo de homem e tipo de mulher, sobre arquitetura - um tema proeminente em Rohmer, como se vê nas imagens de 'Noites de Lua Cheia' (1984) ou de 'O Amigo da minha Amiga' (1987), onde desliza a câmara pela arquitetura das novas cidades-subúrbio de Paris - industrial, com referência visual e verbal às chaminés de uma central nuclear que surgem na vista geral sobre a região.



Conte d'automne, Éric Rohmer (1998)

Visionado em Filmin Portugal

'Conto de Outono', de Éric Rohmer (1998)

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