DA VAGA REALIZADOR DO MÊS
'Alcarràs', de Carla Simón: do som que anuncia as imagens
Volto a trazer as palavras de Lucrecia Martel numa conversa que teve com Carla Simón, na Bienal do Pensamento, em 2022, no CCCB (Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona) - já as trouxera à liça quando escrevi sobre 'O Pântano' (2001), de Martel - quando ela diz que "no cinema, o argumento é uma coisa muito pequena; é apenas a espuma no mar; o filme é tudo: a força marítima, os animais que vivem no mar...". E nesse tudo que é o filme, el sonido [o som] é um elemento tremendamente preponderante, pelo menos no cinema de Martel, mas, depois de 'Alcarràs' (2022), diria que também assim é para Carla Simón, ou pelo menos foi nesta segunda longa-metragem, bem mais do que no anterior 'Verão 1993' (2017) - constataremos se será mesmo cunho identitário que veio para ficar no cinema da catalã, como é na cineasta argentina, quando virmos a sua terceira longa, Romería (2025) - tem estreia mundial marcada precisamente para amanhã no Festival de Cannes. Em 'Alcarràs', o som, quer na forma de ruídos, quer em diálogos, chega muitas vezes primeiro do que as imagens, quer aos protagonistas, quer a nós, espectadores, como que anunciando e sinalizando momentos e eventos determinantes, em diferentes dimensões e distintas camadas. Cabe ao som despertar e convocar, rostos e olhares dos protagonistas, que depois vemos ora estarrecidos, ora raivosos, ora franzidos, ora impotentes, ora desolados, perante as imagens que eles já veem, mas que nós só vemos depois de olharmos, sem pressas, para os rostos deles. Se em 'Verão 1993' Carla Simón quis que olhássemos amiudadas vezes a partir dos olhos da protagonista central (a pequena Frida); em 'Alcarràs' quis, sobretudo, que ouvíssemos com os ouvidos de todos, em geral, e de alguns mais em particular.
Tal como em 'Verão 1993', é também verão em 'Alcarràs', é também no campo, é também na Catalunha (Alcarràs é um município da província Lérida), é também falado exclusivamente em catalão, é também com e sobre família, é também inspirado na vida (em família) da realizadora. Mas agora o espectro é mais alargado: são bem mais personagens a partilharem o tempo e o espaço e, consequentemente, em comparação com 'Verão 1993', assistimos a uma teia maior e mais enredada de relações familiares: de pais e filhos; de marido e mulher; de avô e netos; de irmãos; de cunhados; de primos; de homens com homens; de mulheres com mulheres. Mas, à semelhança do que fez em 'Verão 1993', Simón dedica atenção, tempo e espaço aos mais pequen(in)os - Iris, filha mais nova do casal Quimet e Dolors, e os dois primos, filhos da irmã Nati e do cunhado Cisco -, não subtraindo as brincadeiras, no carro abandonado ou na gruta, as lutas com as couves, melancias e tomates na horta do vizinho, o teatrinho que compõem para a família. Todo o naturalismo e toda a genuinidade do cinema de Simón começam por emanar a partir das crianças (são indissociáveis), quer no relacionamento experienciado entre elas, quer com os adultos, ou mais crescidos, quer com o próprio lugar, no caso, naquela imensa propriedade com um labiríntico pessegal (o sustento da família, que começou no avô e prossegue com filhos e netos) a perder de vista e com mais terreno descampado à volta. E só uma predestinada, como é Carla Simón, conseguiria dar tanto filme aos pequenitos e, pelo meio, dar-nos ainda tanto mais: um avô dividido entre a nostalgia dos tempos passados - em que estabeleceu um acordo vitalício e amigável com o proprietário das terras, a quem socorreu por altura da Guerra Civil Espanhola, e que em troca ganhou esse direito de exploração - e a angústia do presente em que a palavra já não vale um escrito, assim é para o neto do proprietário que agora decide retirar as terras à família, pois em vez de colher pêssegos quer produzir energia solar (aquela sequência de palmilhar noturno das terras, por entre a ramada dos pessegueiros, que o velho faz pela noite, até à madrugada, culminando num plano geral em que os painéis solares já instalados estão sob a luz da lua, é divinal); um filho, que é pai, Quimet, em ebulição desenfreada face ao aviso de despejo das terras, do pessegal, de uma vida, repercutindo a fúria na relação com os filhos, especialmente com o dedicado e seguidor Roger, jovem que secunda e apoia o pai no trabalho agrícola, mas não recebe louvores ou elogios da parte do progenitor; uma filha adolescente, Mariona, em busca de afirmação, e de identidade, vai observando e absorvendo as conversas e as dinâmicas relacionais dos adultos, muitas vezes em silêncio.
Aliás, o olhar de Mariona parece mesmo ser aquele que Simón faz mais de lente, quando a câmara se funde nos olhos de um só protagonista. Câmara que em 'Alcarràs' é muitas vezes um corpo entre corpos (dos protagonistas), movendo-se entre eles, seja na colheita dos pêssegos, por entre os vários membros da numerosa família que surgem e desaparecem por entre as folhas verdes dos pessegueiros, por onde andam também os empregados africanos, imigrantes que trabalham na apanha (tal como aqui temos os tão perseguidos imigrantes asiáticos nos trabalhos agrícolas: da Índia, do Nepal ou do Bangladesh); seja à mesa com todos; seja no tédio que o calor traz; seja no ócio nas pausas da labuta; seja nas danças pouco ortodoxas de Roger nas raves - a câmara, com os seus movimentos em sintonia com os corpos nos curtos e curtíssimos planos que se dão nesses momentos, acentua profundamente o realismo do cinema de Simón; é uma câmara que consegue filmar sem parecer que está a filmar. E quando é para ser observadora, a câmara da catalã coloca-se à distância, enquadra, fixa, e mostra-nos a imensidão da terra sacudida pelo vento que abana os pessegueiros; o avanço dos painéis solares; o avô a descansar debaixo da figueira anciã que matou a fome em tempos de guerra; a ruína no topo da colina (no plano de abertura) que nos transporta no imaginário para as pirâmides do Egipto; um novo retrato da família, agora já não felizes à mesa, agora já não sentados, mas sim em pé, impotentes, a olharem para a ameaça da escavadora - praticamente a encerrar o filme - que se ouve durante um tempo largo e que depois, eles, todos, param para ver, enquanto nós só ouvimos o ruído da máquina.
E voltando ao som; sim, na derradeira sequência do filme em que a família volta a estar toda junta, desta feita embrenhada a fazer doce ou compota de pêssegos, o ruído da tal máquina escavadora que arranca pessegueiros é o som de fundo e, à vez, a pares, e a solo, mas com todos os rostos a passarem pela câmara, agonizamos a constatar o inevitável, desenfreado e impiedoso avanço da modernidade sobre o tradicional - sim, há uma forte componente social também no filme, que retrata a crise da agricultura tradicional, familiar, dos pequenos produtores, num mercado global de livre concorrência.
Alcarràs, de Carla Simón (2022)
Visionado em Filmin Portugal
Adquira o Livro NA VAGA DE ROHMER - Escritos sobre (65) filmes | O ANO ZERO
À venda em Portugal
À venda no Brasil

'Alcarràs', de Carla Simón (2022)