DA VAGA REALIZADOR DO MÊS

Stéphane Pires • 21 de maio de 2024

'A Mulher Sem Cabeça', de Lucrecia Martel: eclipse luminoso


São muitas as mulheres de cabelos loiros que marcaram a história do cinema. Todavia, existem duas mulheres, duas personagens, em dois diferentes filmes, que conseguiram fundir o loiro dos cabelos com o rosto iluminado, numa simbiose geradora de uma cabeça-rosto cintilante, de uma aura, como uma luz de farol ou de candeia, que guia e que ilumina todos por onde passa: Rita Hayworth, como Mrs. Bannister, em 'Dama de Xangai' (1947), de Orson Welles, mesmo a preto e branco; e Ingrid Bergman, como Elena, em 'Helena e os Homens' (1956), de Jean Renoir. A primeira a guiar o rumo da tragédia; a segunda a iluminar o caminho da revolução. Nos instantes iniciais de 'A Mulher Sem Cabeça', de Lucrecia Martel, a mulher loira, de óculos escuros, que despe o sobretudo preto para nos mostrar a força da vida que emana da camisola vermelha que veste, enquanto remexe os cabelos, transmitiu-me naqueles breves segundos - segundos breves, não mais do que isso, porque logo de seguida essa mulher-luz-farol entra em eclipse - um certo magnetismo, uma determinada energia que Rita Hayworth e Ingrid Bergman cederam às respetivas protagonistas. Essa mulher que Martel nos traz é Maria Oneto e, na história, Vero. O eclipse luminoso de Vero, praticamente desde o início, é um dos três ângulos deste filme-triângulo: a nossa necessária e convocada imaginação (enquanto espectadores) e a (não) reação dos outros ao apagamento de Vero são os restantes ângulos.


Quando Vero embate com o carro que conduz, em algo na estrada, começa o eclipse luminoso. Os óculos deixaram de ter sol para atenuar sobre os olhos de Vero, a chuva, de gotas vincadas e abundantes, faz-se agora ouvir e ver no vidro do carro parado na estrada - uns momentos e metros depois do acidente Vero sai, e a câmara permanece no carro - e, num ápice, fará desaparecer as dedadas das mãos visíveis numa das janelas do carro: não, não estão relacionadas com o sinistro, pertencem aos miúdos que momentos antes brincavam no interior do automóvel, mas, na cabeça de Vero, podem remeter para mãos de um miúdo que ela possa imaginar como estando a acompanhar o cão em que o carro embateu; e, no plano inaugural do filme, vemos o mesmo cão com uns miúdos que brincam junto à estrada. O trauma físico - apesar de estar apenas visível uma pequena escoriação na cabeça - e o trauma psicológico rapidamente tomam conta de Vero.


Perda de memória (não responde afirmativamente sobre a existência das duas filhas ou sobre os cursos que ambas estão a tirar); desenraizamento social e profissional (senta-se no bar escuro e fechado do hotel para pedir um chá; senta-se na sala de receção, como mais uma paciente, do seu próprio consultório onde é dentista); paranoia (fica atormentada e acredita que matou uma pessoa na estrada; foge do marido quando este chega a casa com um animal morto que caçou; parece mergulhar nas profundezas dos delírios [literais] da tia, que aparentemente sofre de demência ou alzheimer, sobre mortos, olhando para o rapaz [filho da empregada de casa] como um vulto que paira; parece olhar desconfiada para o irmão [também dentista na clínica de ambos] quando este lhe diz que já recolheu no hospital as radiografias que ela fez; insiste com a rececionista do hotel onde passou a noite do acidente para saber se há registo de ocupação de quarto nesse dia); fragilidade emocional (entrega-se afetivamente ao primo; não contém as lágrimas após queda de um miúdo no campo de futebol, sendo reconfortada pelo homem que faz a manutenção do espaço - num plano que faz pleno jus literal ao nome do filme, ele refresca com água a nuca de Vero, enquanto esta tomba a cabeça, ficando [a cabeça] fora-de-campo, mantendo-se apenas pescoço e costas no enquadramento); e também sentimento de culpa, vazio, arrastamento, uma certa não-pertença aos lugares e às pessoas: tudo isto vai apagando, progressivamente, a luminosidade de Vero.


O som, que emana dos diferentes espaços, ocupa, alimenta, controla e aprisiona a mente de Vero: seja o ruído maquinal de fundo, permanente, no hospital; seja o ruído da refrigeração no quarto de hotel, misturado com o (ruído) dos alarmes que ecoam do exterior; seja o ruído de validação dos códigos de barras na caixa de supermercado (tão similar às máquinas que separam a vida da morte nos hospitais); sejam as sirenes de bombeiros ou polícia que se ouvem sem se verem; seja a pá do jardineiro em casa que embate na conduta enquanto abre uma vala. Morte, perigo, socorro são construções presumivelmente potenciadas, por sons e imagens, pela cabeça de Vero.


 Já nós, espectadores, somos não menos do que forçados a imaginar. Imaginar como seria Vero antes do embate, alimentados por aquele vislumbre inicial da sua figura, e pela forma como todos os outros se movimentam perante ela e à volta dela, algo que nos remete para a crença ou ideia de que Vero emanava o tal magnetismo e aura que sentimos fugazmente na sua cabeça-rosto cintilante no inicio do filme. Ainda que em processo eclíptico, Vero continua como foco de atração e cuidados para o primo Juanma (Daniel Genoud), a prima Josefina (Claudia Cantero), a carente prima Candita (Inés Efron), ou para o irmão, não tanto para o marido. Sim, também imaginamos um corpo (morto) de um dos miúdos das comunidades indígenas - Martel volta a usar o seu cinema para expor as clivagens sociais na Argentina, evidenciando a marginalização, a insegurança, a desproteção, o trabalho infantojuvenil, o isolamento habitacional, a que estão vetadas aquelas crianças e jovens - que vemos nas primeiras cenas do filme, morto pelo carro de Vero ou morto pelas chuvas da tempestade que encheram o canal junto à estrada.


E os outros? Os que gravitam em volta de Vero? Não veem, não são capazes de ver, ou não querem ver para lá do que os olhos olham: a mudança interior de Vero. Reparam, notam apenas nas imagens de exterior: a mudança de cor de cabelo de Vero - trocou o loiro pelo preto - e o estado da dianteira do carro sinistrado. Não olham, não querem olhar para dentro dela, para o seu apagão (também) interior. Talvez terá sido por isso que Martel nos colocou a olhar para rostos e corpos, não raras vezes, através do reflexo de espelhos e vidros, reduzindo a nitidez e o foco com que olhamos para os outros e com que vemos os outros.


La mujer sin cabeza, de Lucrecia Martel (2008)

Visionado em Filmin Portugal

'A Mulher sem Cabeça', de Lucrecia Martel (2008)

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